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Amizade abusiva em ‘The Boys In The Band’

Giselle Costa Rosa

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16 de outubro de 2020

Em primeiro lugar tenho um aviso. Embora esse texto contenha spoilers da produção da Netflix The Boys In The Band, vou falar sobre amizade abusiva entre gays e não fazer uma crítica do filme.
Vou abordar ao longo da escrita algumas passagens da obra. Traçar um paralelo com a vida como muitas vezes ela é: cruel, tóxica, abusiva. Adjetivos que não deveriam estar contidos em nenhuma relação. Muito menos na amizade entre gays, comunidade que muitas vezes sofre de autofagia.

Gay e homofóbico: pode isso Arnaldo?

Claro que sim! Assim como o gay de direita e a favor da família tradicional. É normal o estranhamento a princípio, mas se pensarmos bem, faz sentido. Anteriormente, os homens, principalmente há uns 50 anos, não saiam por aí bradando aos quatro ventos sua orientação sexual.
Junte-se isso a educação machista recebida ao longo da infância e todo o ensinamento religioso dizendo que homossexual queima no inferno. Receita infalível para termos muitos gays enrustidos com pavor de serem descobertos. Se tiver tempo, veja Eu sou Michael, com Zachary Quinto e James Franco.

No filme The Boys In The Band temos o personagem Michael, vivido pelo bom ator Jim Parsons. Vemos ele negar sua sexualidade diante da visita iminente de Alan, seu ex-colega da faculdade que de passagem na cidade. Imagine ele no meio de um rolê em sua casa, com os amigos também gays, tendo que se segurar pra não dar “pinta”. E não só isso. Por conseguinte, impor que nenhum dos presentes desse pinta. Ora, ora… não precisava ser nenhum Sherlock para saber que esse era um plano morto antes mesmo de nascer.
Vale lembrar que a história se passa na cidade de Nova York, no final na década de 60. O evento que reúne toda a patotinha, um grupo formado por sete amigos, é o aniversário de Harold (Zachary Quinto). Pausa para aplaudir a atuação de Zachary.
Posto isso, vislumbre o quanto era encarcerador só poder exercer sua sexualidade em guetos ou na casa de amigos que também fossem gays. Afinal, na época, não existia essa história do homem ser qualquer coisa que fosse diferente de cis hétero.

Casado, com filhos e gay

Casar com uma mulher e ter filhos era o normal e o esperado de toda pessoa que carregasse os cromossomos XY. Nesse ínterim, o casamento frequentemente virava uma prisão.
Cada um se virava como podia. Uns cavavam túneis para dar suas escapadelas, outros se voltavam contra mulher e filhos e muitos sentiam raiva de si próprios, tornando-se homofóbicos. Poucos eram os que se separavam e conseguiam viver minimamente o que queria.
Então, a lógica era: se não posso ser o que quero, se não posso nem conceber a ideia de ter o que desejo, preciso repudiar isso de alguma forma. Grosseiramente falando, é dessa tentativa de assassinar o desejo que nascem muitos daqueles que virão posteriormente ser agressores de gays.

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Foto: Netflix / Divulgação


No meio da festinha, chega o cara hétero, Alan (Brian Hutchison). Defensor da família tradicional e dos bons costumes, e claro, muito bem entendido, situa-se logo. No entanto, ele se depara com um recém saído do armário entre eles. Todo heteronormativo em seu modo de estar no mundo, esse cara chama a atenção de Alan que, obviamente, começa a dar em cima dele. Afinal, os iguais se reconhecem, né mesmo? Quem não gosta nada é o namorado de Alan, defensor do amor livre, mas só pra ele.
Aos poucos o desconforto vai aumentando na medida que os amigos de Michael vão ficando mais à vontade na presença de Alan. Lembra do papo de repressão do desejo? Pois bem, não demora para Alan socar um dos caras.
Adivinha com quem ele encrenca? Logo com o gay mais “afeminado”, “pão com ovo” ou “poc”, termos pejorativos utilizados no próprio meio. Afinal, essa “bichinha” representa tudo aquilo que ele foi criado para ojerizar. Bem, tiremos o Alan de cena um pouco.

Competividade masculina

Homens em geral, independentemente de sua orientação sexual, são bem competitivos entre si. Desde do tamanho do pênis, passando por quantas pessoas já pegou e terminando em quem se deu melhor profissional e financeiramente.  Gostam de exibir seus troféus e suas conquistas mesmo que subjetivas. Hoje ainda temos uma educação encharcada de muito machismo.
Embora existam muitas desconstruções em curso, nossa sociedade é feita para servir o homem cis hétero. Ou seja, seja o macho alfa mesmo em meio aos “viadinhos”.
Isso me fez lembrar do filme “Mulheres Perfeitas” (2004), com Nicole Kidman, Bette Midler, Glenn Close. A história é basicamente um lugar onde as mulheres são modificadas para virarem esposas ideais, sendo absolutamente submissas aos homens. Existe até um controle remoto para controlá-las.
O lugar é todo perfeito: casas, supermercados, arborização. E o único casal gay é muito bem tratado. Porém, o mais espalhafatoso acaba passando pela mesma transformação das mulheres. O cara vira a versão gay do hétero topzera de direita, claro.
O filme é bobo, mas toca em questões bem importantes. Lembre-se: nesta nossa sociedade patriarcal, toda e qualquer característica atribuída ao feminino se constitui como sinal de fraqueza.

Amizade também pode ser abusiva

Embora se fale muito sobre relações abusivas, costuma-se dar ênfase aos aspectos de uma relação afetivo/sexual. Pouco ainda se fala de todas as outras relações que também têm o potencial de se tornarem tóxicas, incluindo as relações de amizade.
Desse modo, é bem comum ver rolando no meio gay uma amizade abusiva. Assim como todos nós, eles tentam catalogar os possíveis tipos e utilizar isso posteriormente como arma. Como se não bastasse, existe um padrão gay de beleza, também dividido em categorias (do qual não irei me ater). Um gay que não acha o seu nicho pode sofrer ainda mais bullying.
Portanto, muitas brincadeiras e sarcasmos vão sendo destilados nos grupinhos. À medida que muitos guardam pra si as mazelas de vivenciar uma amizade tóxica, mágoas e desafetos vão sendo cultivados placidamente. A questão é que muitos nem se dão conta que estão em um relacionamento abusivo. Afinal, quem quer perder o sentimento de pertencimento?
Nesse jogo de morde e assopra em que tudo não passa de brincadeira, a cobrança pelo corpo, pele, sorriso, job, casa e até mesmo pet perfeitos pode colocar muitos à beira do suicídio. Soma-se a isso redes sociais e aplicativos de paquera. Muitos, no afã de atender aos padrões de beleza, recorrerem a medidas como cirurgia plástica ou até uso de esteroides anabolizantes sem acompanhamento médico.

Atente-se para os sinais e pule fora

Dizem por aí que o álcool entra e a verdade sai. No caso de Michael, o verdadeiro “eu” resolve ficar fora da casinha. Toda a tensão de “esconder” sua sexualidade de Alan, toda sua educação severa e religiosa, todos os seus fracassos na vida se traduzem num humor sarcástico, humilhante e sem empatia.
A pergunta que fica é: isso constitui uma amizade saudável? Leia sobre os sinais de estar vivendo uma relação de amizade abusiva. Assista ao filme e tire suas próprias conclusões. Depois comente aqui se isso ocorria ou não entre eles.

Giselle Costa Rosa

Integrante da comunidade queer e adepta da prática da tolerância e respeito a todos. Adoro ler livros e textos sobre psicologia. Aventuro-me, vez em quando, a codar. Mas meu trampo é ser analista de mídias. Filmes e séries fazem parte do meu cotidiano que fica mais bacana quando toco violão.
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