BAÚ DO BLAH! | ‘Jeanne Dielman, 23, Quai du Commerce, 1080 Bruxelles’ (1975)

Bruno Giacobbo

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1 de março de 2019

Em 1975, com 24 anos, quase 25, a cineasta belga Chantal Akerman lançou aquela que, mesmo depois de dirigir mais de 40 filmes, seria considerada a grande sua obra-prima: Jeanne Dielman, 23, quai du Commerce, 1080 Bruxelles. Bastante peculiar, este longa-metragem de 3h15 tem sua narrativa totalmente centrada em três dias na vida de uma dona de casa viúva e de seu filho adolescente. Pouquíssimos cenários são utilizados e ele é bem compartimentado, com cerca de uma hora dedicada a cada jornada diária.

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Para além do hermetismo evidente, muitos são os detalhes que fazem deste filme objeto de adoração e estudo até os nossos dias. A principal intenção de Chantal era fazer com que o público se sentisse íntimo da vida de Jeanne (Delphine Seryng). E conseguiu. Com uma câmera estática, a cineasta esquadrinhou cada segundo da rotina da protagonista. E a palavra rotina, aqui, tem que ser interpretada em sua literalidade. Do nascer ao pôr do sol, observamos todas as suas atividades. Ela levanta, acorda Sylvain (Jan Decorte), faz café, despacha-o para a escola, sai, vai ao correio, faz compras, volta, cozinha o jantar, recebe o filho, toma a lição de casa, ouve rádio e dorme. Há leves diferenças entre um dia e outro.

Se você está lendo este texto agora e ainda não viu o filme, há uma chance razoável de estar tendo o seguinte pensamento neste momento: “Que coisa monótona! Que tédio!”. Bom, ninguém aqui disse que esta era uma obra de fácil assimilação ou um entretimento para toda a família. Não, não é. Para ver Jeanne Dielman, 23, quai du Commerce, 1080 Bruxelles é necessária uma dose de boa vontade e paciência. Se você tiver ambos, será recompensando com um das películas mais originais e instigantes da história do cinema. Uma produção que realmente merece o epíteto de obra-prima.

Antes de mais nada, Chantal produziu um dos melhores estudos de personagem de todos os tempos. À medida que os minutos vão passando e vamos conhecendo a protagonista, descobrimos que por trás da aparência de dona de casa cordata, fala mansa e conformada com a vida medíocre que leva, existe uma mulher que se exaspera com relativa facilidade. Pequenas coisas a incomodam: a batata que cozinhou demais, a inexistência de um botão igual ao que caiu do casaco e até mesmo a mulher que sentou no seu lugar preferido no café da esquina. Olhando superficialmente, sem nos embrenharmos em seus mistérios, isto tudo parece bobagem. Só que, a esta altura do campeonato, nós já a conhecemos e sabemos que ela está acumulando tudo lá dentro sem extravasar. E pessoas que nunca deram um berro sequer, ao explodirem, são imprevisíveis.

Se todas as sinopses possíveis e imagináveis já não tivessem dito disto, eu poderia tentar omitir o fato que, pontualmente, lá pelo fim da tarde, Jeanne arranja um tempinho para se prostituir recebendo homens em casa. Mais inquietante do que o ato sexual em si, que quase não é mostrado, é o banho que ela toma após cada programa. Reparem, também, como, em seguida, a protagonista lava a banheira. Não é sem significado. Só que até estes fatos acabam caindo na rotina. E uma que vez voltamos a falar desta, o esquadrinhamento da rotina foi feito de uma forma bem interessante. Cozinha, sala e os demais cômodos do pequeno apartamento são mostrados por ângulos diversos. Este recurso, simultaneamente, faz o principal cenário do filme parecer maior do que é e enfatiza o desgaste derivado da repetição de um cotidiano enfadonho, já que a feição exaurida da dona de casa se descortina de muitas maneiras.

Dizem que todo filme é, em alguma medida, autobiográfico. Quando Jeanne Dielman, 23, quai du Commerce, 1080 Bruxelles foi lançado, muito se falou que Chantal Akerman havia feito um manifesto feminista, classificado pelo ‘The New York Times’ como “a primeira obra-prima feminina da história do cinema”. Neste caso específico, a afirmação que abre este parágrafo não poderia soar mais equivocada. Afinal, o que teriam em comum a protagonista e uma cineasta revolucionária? Nada. Certo. Contudo, quis o tempo que uma fatalidade unisse estas duas personagens singulares. No 5 de outubro de 2015, a diretora cometeu suicídio. A notícia pegou seus fãs desprevenidos justamente por ser dotada da mesma imprevisibilidade que caracteriza a explosão de pessoas como Jeanne Dielman. Assim, dá para afirmar que a belga saiu de cena de uma maneira tão surpreendente quanto o jeito com que este filmaço surpreenderá os espectadores mais pacientes.

Desliguem os celulares e excepcional diversão.

::: TRAILER

::: FICHA TÉCNICA

Título original: Jeanne Dielman, 23, quai du Commerce, 1080 Bruxelles
Direção: Chantal Akerman
Elenco: Delphine Seryng e Jan Decorte
Distribuição: Janus Films
Data em que estreou: 14/05/75
País: Bélgica e França
Gênero: drama
Ano de produção: 1975
Duração: 201 minutos

Bruno Giacobbo

Um dos últimos românticos, vivo à procura de um lugar chamado Notting Hill, mas começo a desconfiar que ele só existe mesmo nos filmes e na imaginação dos grandes roteiristas. Acredito que o cinema brasileiro é o melhor do mundo e defendo que a Boca do Lixo foi a nossa Nova Hollywood. Apesar das agruras da vida, sou feliz como um italiano quando sabe que terá amor e vinho.
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