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‘Benedetta’: Paul Verhoeven mira em crítica à Igreja e acerta em fetiche de freiras lésbicas

Ana Rita

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31 de janeiro de 2022

Paul Verhoeven é um diretor que muitas vezes divide opiniões sobre suas obras, como, por exemplo, Showgirls, odiado por uns e amado por outros (me incluo no segundo quesito). Sendo assim, seus trabalhos são sempre muito aguardados, como foi o caso de seu último filme Benedetta, apresentado pela primeira vez no Festival de Cannes de 2021, mas que chegou ao Brasil em 2022.

Com uma premissa já polêmica, a repercussão em Cannes e a opinião de alguns críticos importantes, a obra conquistou uma atenção interessante, principalmente de conservadores e comunidades católicas, resultando até em manifestações. No Festival de Cinema de Nova York, durante sua exposição, certos grupos protestaram em frente ao evento, criticando Paul e o filme, considerando que Benedetta seria uma heresia e blasfêmia.

Fatos reais

O filme é baseado em fatos reais e conta a história da freira Benedetta, que na Idade Média alegou ter tido visões com Jesus Cristo e realizado milagres. Até aí pode ser mais uma história comum de alguma santa. A questão é que ela se envolveu sexualmente com uma mulher no convento onde morava. Se uma relação homossexual ou lésbica já é condenada pela Igreja Católica, uma relação dessas entre duas freiras é algo de nível maior.

Deste modo, espera-se uma história interessante, podendo conter críticas à Igreja, trazendo à tona um fato não tão conhecido e extremamente polêmico, com forte teor sexual, marca já bastante comum nos filmes de Paul Verhoeven, como no famoso Instinto Selvagem. Infelizmente, a produção toma outro viés e acaba indo para um lado bastante fetichista, sendo incômodo para muitas pessoas.

De família abastada, Benedetta inicia sua vida religiosa cedo. Já se mostrando bem religiosa e com forte conexão com a Virgem Maria, havia ainda o desejo e a promessa dos pais. Ou seja, a sua ida ao convento é também de sua vontade e satisfação.

Iconografia e imagem sagrada para Igreja Católica

O uso de imagens sacras é algo muito importante na Igreja Católica. Mas essa utilização de ícones já se mostra controverso no Antigo Testamento da Bíblia Sagrada com uma proibição no livro Êxodos: “Não farás para ti imagem esculpida de nada que se assemelhe ao que existe lá em cima, nos céus, ou em baixo, na terra, ou nas águas que estão debaixo da terra. Não te prostrarás diante desses deuses e não os servirás”.

Durante o Império Bizantino, quando o cristianismo já era a religião oficial, há um surto de iconolatria, adoração de imagens, que sendo uma religião recente, começava a absorver e misturar ritos e crenças com religiões ditas pagãs. Entretanto, com a insatisfação de certos grupos, o culto de imagens passa a ser proibido. Tem-se o movimento Iconoclasta, no qual imagens foram destruídas, uma vez que o culto a elas poderia ser perigoso devido a uma possível idolatria.

Ainda no mesmo período isso muda e as imagens voltam a ser veneradas. Essa questão é discutida novamente durante a Contra Reforma Católica, que resultou no surgimento de algumas religiões protestantes como calvinismo e luteranismo, que voltam a condenar esses ícones.

Polêmica de Paul Verhoeven

Faço esse resgate histórico, como forma de relembrar a importância e a história breve de imagens sagradas para Igreja Católica, já que Paul Verhoeven criou uma forte polêmica dentro do filme, sendo um dos pontos mais protestados e abominados pelos católicos conservadores que se manifestam contra Benedetta. A Igreja Católica Apostólica Romana adora imagens, afinal, essa representação material de figuras sacras é uma forma cruzar o mundo real e o espiritual.

Durante uma relação sexual entre Benedetta e essa outra mulher, Bartolomea, há o uso de uma imagem sacra ‘adaptada’ para fins sexuais. Uma peça de madeira, que era a imagem de uma santa, é manipulada por Bartolomea, que após ser esculpida, apresenta um formato falocêntrico.

De fato, trata-se de um momento bastante polêmico. Afinal, para um católico conservador (e até um não conservador) é visto como blasfêmia. Sabemos como a Igreja vê o sexo. Não há necessariamente uma crítica nessa cena, pode ser apenas uma brincadeira de Paul e uma forte provocação à Igreja.

Entretanto, é também uma forma de reafirmar a posição do homem para satisfação sexual da mulher. A importância do ‘macho’ e de seu ‘órgão’, caminhando para o lado fetichista masculino sobre o sexo entre mulheres.

Corpo e templo

Na chegada de Benedetta ao convento, a freira que a acompanha fala que “o seu maior inimigo é o corpo”. Outro ponto interessante que Paul Verhoeven dá destaque é essa relação e significado do corpo para a Igreja. Corpo é a materialização do ser humano, aquilo que o torna real, tátil.

Durante a Idade Média, mesmo podendo ser visto como um templo para o Espírito Santo, o corpo é desprezado, condenado e mutilado. Seja de não dar importância, podendo se associar a luxúria, narcisismo, considerado pecado mortal. A salvação para o cristianismo poderia passar por uma penitência corporal, como acontece durante um pronunciamento do convento e há penitência na irmã Cristina que denuncia Benedetta após suas visões e milagres.

Como a personagem principal se mostra inteligente, um ser pensante e ativo, não sendo facilmente domado pelas convenções e normas do convento, na chegada de Benedetta, a freira conclui com um breve “mas ter inteligência pode ser perigoso”.

Ainda vivemos em uma sociedade patriarcal, mas é interessante voltar ao contexto medieval fortemente católico com essa intensa devoção e submissão da mulher perante o homem, a Igreja e Jesus.

Blasfêmia e pecados

Desde sua chega no convento, Benedetta tem suas visões com Jesus, assim como milagres começam a acontecer. Afirmando o tempo todo que é esposa de Jesus, ela reforça sua ligação e devoção.

A chegada de uma jovem que foge do pai agressivo muda tudo para Benedetta. Essa mulher é Bartolomea, uma pobre camponesa que entra para o convento com os pais da freira pagando o dote. Assim, de forma nada sutil, o longa-metragem mostra que “os ricos não vão para o céu”, explicitando o caráter elitista da Igreja.

Na maioria das visões da freira, há uma possessão. Seu corpo é tomado pelo que diz ser Jesus, possuindo um comportamento agressivo. Nesses momentos, Benedetta é protegida por esse ‘Espírito Santo’ e também condena atos da Igreja, gritando ‘blasfêmia’ e avisando sobre o motivo da peste, bem como, condenando comportamentos da instituição religiosa, que ignora quem os protege.

As visões recorrentes, os milagres e uma possível materialização do espírito divino criam a Santa Benedetta, amada e adorada por muitos, mas também não aceita por alguns, atraindo olhares desconfiados.

Fetiche

Mesmo com críticas interessantes e fortes, Paul Verhoeven erra no seu alvo. Certamente há críticas e provocações à Igreja Católica com o uso de uma história real, a presença do absurdo e da hipocrisia. Mas o filme Benedetta acaba sendo incômodo e errado. Afinal, traz o famoso fetiche com lésbicas, dessa vez no contexto da Idade Média e entre freiras.

Em um dos sonhos ou visões de Benedetta, ela vê uma cena na qual está fora do convento e militares do exército chegam para atacá-la e estuprá-la, mas é salva por um homem que acredita que é Jesus, mas, em seguida, vê que não é. Ainda hoje existe uma ideia por certos homens de que a mulher pode ter dono, um objeto de posse e não um ser humano pensante, livre e com poder de ação. Benedetta até diz posteriormente: “o diabo abusou de mim”.

Relação mal construída

A relação de Benedetta e Bartolomea não é construída, seu laço não tem profundidade. De fato, não precisaria ser profundo, poderia ser apenas algo sexual, sem nenhum romance. O problema é o modo como a tensão sexual entre as personagens é construído. Isso porque alimenta-se um clima de desejo desse ato proibido como se estivesse sendo imaginado por um homem. E foi. Isso fica bem claro.

O foco sobre a heresia de Benedetta não é sobre a relação com Bartolomea. É como se a Igreja apenas condenasse o sexo, sendo este o principal pecado, principalmente pelo uso de uma imagem sacra como um ‘instrumento erótico’. Não é como o erro de Azul é A Cor Mais Quente, mas as cenas entre Benedetta e Bartolomea se aproximam nessa satisfação desse fetiche falocêntrico sobre o sexo entre duas mulheres. O desejo maior da freira é por Jesus, seu esposo, o qual sexualiza, sendo algo totalmente impuro e errado para a Igreja.

Um breve paralelo para comparação

Entre 1646 a 1652, o artista Bernini criou uma das mais belas obras da história da Arte, a escultura barroca “O Êxtase de Santa Teresa”. A obra foi e é bastante polêmica por cruzar essa linha comparativa do prazer espiritual e erótico, carnal dentro do contexto religioso. Santa Teresa teve uma visão de que um anjo havia cravado uma espada de ouro em seu coração, vivenciando uma intensa experiência espiritual.

A expressão de Santa Teresa na escultura é de alguém em prazer, há um forte apelo erótico. Bernini disse ter interpretado ao pé da letra a declaração da própria Teresa. Essa importante e famosa obra de arte traz junção do prazer da carne e do espírito. Uma adoração, paixão e admiração trazido pela espiritualidade, pelo amor de Deus e graça do Espírito Santo.

Esse breve paralelo entre a obra “O Êxtase de Santa Teresa” e o filme Benedetta mostra que artistas já criaram essa relação do prazer espiritual e carnal não visto com bons olhos pela Igreja. A diferença é que, na obra de Bernine, concentra-se em Santa Teresa e sua elevação espiritual, enquanto Benedetta teria potencial para mostrar essa ‘adoração’ tão abominada da freira pela Igreja. O primeiro ato trabalha bem essa dualidade que a religião tanto tenta fugir, mas que faz parte do ser humano, condenando esse prazer carnal. O problema é como tudo isso é representado, do fetiche e da adoração a figura do homem e sua ‘masculinidade’.

A figura do homem na Igreja

Paul Verhoeven reforça o teor erótico em Benedetta com uma forte sexualização sobre a imagem formada de Jesus, podendo ser uma crítica a ideia que temos do filho de Deus como o padrão branco e de olhos azuis que tanto é cultuado em nossa sociedade. Com constates afirmações de Benedetta sobre ser a esposa de Jesus, logo tem-se a criação de um contraste com o celibato dentro dos membros da Igreja, acompanhado com os tabus em torno do sexo, a virgindade e o ideário de pureza.

O filme constrói também uma crítica em relação à figura do homem para e pela Igreja. Sempre em um posto alto, de poder e que dita normas, regras, assim como sua importância hierárquica e sua associação com certos preceitos católicos. Afinal, para a Igreja, a maior figura é Deus, que é um homem, bem como seu filho.

Mas mesmo com essa crítica e essa noção da posição do homem em nossa sociedade, Paul Verhoeven não ameniza o tratamento e idealização fetichista que cria em cima de Benedetta e Bartolomea.

Farsa?

Mesmo que vejamos as visões de Benedetta, esses milagres são colocados em dúvida, que já despertavam incerteza entre outros membros da Igreja, como a irmã Cristina que a denuncia. Não sendo ouvida e obrigada a penitência corporal, acaba cometendo suicídio, já que nem o apoio da antiga Madre Felicita, a irmã havia conseguido. Para a Igreja Católica, durante muito tempo, tirar a própria vida foi visto como algo negativo e condenado. Inclusive, não se realizava a conhecida Missa de Sétimo Dia em casos como esse.

O contexto histórico de Benedetta é o período da peste negra que assolou a Idade das Trevas e provocou muitas mortes, uma pandemia que ainda assusta.

Diversas vezes, Benedetta é acusada de blasfêmia e heresia, mas parece ter controle de tudo, afinal, é esposa de Jesus. No final, esses milagres são postos totalmente em dúvidas, ficamos a mercê das visões de Benedetta. Já não sabemos o que é real e o que foi farsa. Mesmo condenada e julgada, a freira decide continuar no convento, seguindo algumas mudanças e novas regras.

Qual foi a intenção?

Mas qual teria sido a intenção de Paul Verhoeven com o filme? Uma crítica à hipocrisia e às condenações católicas? O uso de uma história real condenada pela Igreja para nos apresentar a “Santa Benedetta”? Ou apenas satisfazer um fetiche?

Em determinados momentos, notamos uma necessidade em chocar, mostrando costumes e hábitos da Idade Média, como o banheiro e higiene, uma forma de causar humor, tirar sarro dessa ideia que se construiu dessa idade das trevas tão misteriosa e cheia de proibições.

Como já disse, o início do filme é interessante, havia potencial de uma contundente crítica da Igreja e seus costumes com uma história tão polêmica que vai de encontro com muito que o catolicismo condena. Há provocações fortes, mas, da metade para o final, parece haver apenas a satisfação de um fetiche envolvendo freias lésbicas, deixando essa pertinente provocação como segundo plano, sem muito tom crítico, sendo apenas chocante e polêmico.

Onde assistir ao filme Benedetta?

A saber, o filme Benedetta está em cartaz nos cinemas de todo o Brasil. Aliás, vai comprar algo na Amazon? Então apoie o ULTRAVERSO comprando pelo nosso link: https://amzn.to/3mj4gJa.

Trailer do filme Benedetta

Benedetta: elenco do filme

Virginie Efira
Lambert Wilson
Daphne Patakia

Ficha Técnica

Título original do filme: Benedetta
Direção:
Paul Verhoeven
Roteiro: David Birke e Paul Verhoeven, baseado no romance de Judith C. Brown
Duração: 131 minutos
País: França, Bélgica e Holanda
Gênero: drama
Classificação: 18 anos

Ana Rita

Piauiense, nordestina e estudante de Arquitetura, querendo ser cinéfila, metida a crítica e apaixonada por cinema, séries, arte e música. Siga @trucagem no Instagram!
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Créditos Galáticos

Créditos Galáticos: 4

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