Ilha Grande em Angra dos Reis, Cachoeira da Feiticeira

Cachoeira da Feiticeira, por Alvaro Tallarico

BÔNUS | Saramago e Seu Sílvio em O Conto da Ilha Desconhecida

Alvaro Tallarico

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16 de outubro de 2019

Em O Conto da Ilha Desconhecida, o homem que queria um barco vai até o rei, mas quem nos leva nessa embarcação é José Saramago. Possuidor de um estilo único e original de escrever, usando a língua portuguesa e evitando pontuações gramaticais. Uma estilística que requer uma atenção maior, ao mesmo tempo que cria a vontade de não parar de ler. Saramago me lembrou da Ilha Grande, em Angra dos Reis, no Rio de Janeiro. Mais especificamente do Seu Sílvio. Naquela semana de um agosto qualquer, Júnior e eu trilhávamos ao redor daquela famigerada ilha. Um pequeno grande pedaço de paraíso, com várias comunidades menores e distintas entre si, cada uma dotada de personalidade própria.

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Dentre elas, existe a Parnaioca. Praia de uma rusticidade exuberante, com um cemitério e poucos moradores, local onde deságua um rio povoado por muitas cascatinhas navegadas por lendas. Dizem que em cada uma dessas quedas há uma fada brilhante. Ou uma aranha venenosa. Dos poucos moradores, Seu Sílvio é um deles. Seu quintal é um grande acampamento, onde muitos mochileiros e viajantes se hospedam. Seguindo a dica do simpático senhor, Júnior e eu mergulhamos em um canto específico do mar, onde vimos cardumes de espelhos. Na verdade, peixes prateados que refletiam o sol como estrelas atlantes.

Ali, seguimos curiosos uma tartaruga mar adentro, acompanhando embasbacados seu nadar iogue até darmos com o cansaço e percebermos o quão longe nos encontrávamos da segura areia. Onde jazia Seu Sílvio. Com estilo levemente bonachão, gostava de companhia. No entanto, os tantos andarilhos não supriam sua áspera solidão, enferrujada pela maresia. Torcia pelo Vasco, time de futebol que segue mal das pernas. Logicamente, isso não ajuda muito o nobre bigodudo. No tempo que lá estivemos, ainda pudemos acompanhar um jogo do Vasco junto a ele. O resultado? Derrota, claro.

A cada novo grupo de viajantes, o grisalho e parrudo Seu Sílvio fica ávido por alguma dama, do dia ou da noite, que se apaixone por Parnaioca e queira a seu lado ficar. A rede sempre pronta no aguardo de um peixe que alimente sua alma e vibre a vontade de viver, fornecendo uma dose diária de parceria que prolongue a fagulha de seguir adiante. Como um leão marinho solitário aguardava o cessar, ainda na esperança de um começar de novo.

Se não sais de ti, não chegas a saber quem és

Enquanto Seu Sílvio jaz na Ilha Grande, os personagens sem nome de Saramago mantém uma curiosidade constante no leitor em busca da ilha desconhecida. Surgem passando por portas decisórias e seguindo novos rumos, instigantes e aventurosos, sem se darem conta. “O Conto da Ilha Desconhecida” é uma metáfora da busca de si. Procurar preencher o vazio em uma viagem; a navegação, assim como a vida, tem a iminência das imprecisões. Ilha é uma chão seguro rodeado por água. Mas, como encontrar uma ilha desconhecida? É por acaso, quando você sai em busca de uma coisa e encontra outra. Quem procura uma ilha desconhecida provavelmente vai achar outras coisas distintas no caminho, talvez até muito mais valiosas e relevantes. Sabe aquela velha história de que a jornada importa mais do que o fim?

O livro conta ainda com passagens que destilam sabedoria e convidam para uma reflexão instantaneamente assim que se lê como: “Gostar é provavelmente a melhor maneira de ter, ter deve ser a pior maneira de gostar”, ou pérolas como “Se não sais de ti, não chegas a saber quem és”. Esta última talvez resuma um pouco o mote principal do conto. Às vezes, é necessário ir rumo ao cardume de estrelas, ad astra.

Calma, não precisa dessa grandiosidade megalomaníaca toda, uma saída da zona de conforto pode gerar o movimento, um farfalhar de asas de uma borboleta que criará um tufão do outro lado do mundo. Seguir rumo às estrelas pode ser simplesmente fazer um caminho diferente, principalmente dos já trilhados – ou navegados. Um passeio até a esquina onde a vaidade faz a curva.

não sou eu quem me navega, quem me navega é o mar

A leitura do livro passa rápido, mais uma vez facilitada pela estética literária do escritor. Fica um desejo de adentrar o mar tenebroso para também procurar uma ilha desconhecida, encarar essa viagem perigosa, lúdica, dita impossível e ironizada pelos reis, pois esse tipo de ilha não mais existe, todas já estão mapeadas.

Contudo, não sou eu quem me navega, quem me navega é o mar, como diria Paulinho da Viola. Esse mar é a vida; e cada vida é para ser navegada da forma que seu capitão quiser. Calcula-se algo que está por vir, sem nunca realmente saber o que aparecerá. Sua ilha desconhecida pode ser um encontro inesperado com seu reflexo, um sonho que, ilusoriamente, lhe mostra alguma verdade, concluindo em um abraço, um acordar acompanhado das gratas surpresas que uma onda pode trazer.

o colorido que existe fora

Sentado em frente a uma tela brilhante e circunscrita para escrever esse texto, após Saramago ter me transportado para outra dimensão, e para a Ilha Grande, lembrei de outro viajante escritor, Amyr Klink: “Um homem precisa viajar. Por sua conta, não por meio de histórias, imagens, livros ou TV. Precisa viajar por si, com seus olhos e pés, para entender o que é seu. Para um dia plantar as suas próprias árvores e dar-lhes valor. Conhecer o frio para desfrutar o calor. E o oposto. Sentir a distância e o desabrigo para estar bem sob o próprio teto. Um homem precisa viajar para lugares que não conhece para quebrar essa arrogância que nos faz ver o mundo como o imaginamos, e não simplesmente como é ou pode ser. Que nos faz professores e doutores do que não vimos, quando deveríamos ser alunos, e simplesmente ir ver”.

A riqueza da democrática literatura, de um artista das palavras ao velejador, todos buscaram o desconhecido vivendo a novela diária que é a vida, a qual vamos escrevendo no decorrer dos acontecimentos. Encontrar a ilha desconhecida é se conhecer; se permitir ir além do espelho superficial. Meditar e se ver num mar de águas claras, deitado na areia morna. Todavia num encontro consigo mesmo possa ocorrer um esbarrão com um certo alguém; ao olhar para dentro, ver o colorido que existe fora. Ou ao trilhar numa praia isolada, conhecer Seu Sílvio e nunca mais esquecê-lo.

BÔNUS: FLUP – Festa Literária das Periferias

Para quem gosta de literatura, a dica é a 8ª edição da FLUP – Festa Literária das Periferias que acontece de 16 a 20 de outubro, no Museu de Arte do Rio – MAR, Rio de Janeiro. Esse ano, o autor homenageado é o pernambucano Solano Trindade, primeiro poeta ativista negro no Brasil e um dos criadores do teatro negro brasileiro. Além disso, foi pintor, ator, cineasta e folclorista. Importante ressaltar que a entrada é gratuita e todas as exposições estarão com entrada franca durante o evento.


A coluna BÔNUS sai toda quarta-feira aqui no BLAH!ZINGA. Um oferecimento desse que vos escreve: Alvaro Tallarico @viventeandante 🙂

Alvaro Tallarico

Jornalista vivente andante (não necessariamente nessa ordem), cidadão do mundo, pacifista, divulgador da arte como expressão da busca pela reflexão e transcendência humana. @viventeandante
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