Consciência Negra | Entenda por que ‘Corra!’ é um dos filmes mais importantes das últimas décadas

Danilo Firmino

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19 de novembro de 2018

Talvez o título acima surpreenda alguns leitores menos atentos: afirmar que Corra! é um dos grandes filmes das últimas décadas parece uma insanidade. Afirmar que é o mais importante longa-metragem de 2017 já é algo complicado, diria alguns. Porém, se atentem ao que o título quis dizer: “um dos filme mais importante das últimas décadas”. E sim, ele é mais importante do que todas as grandes produções de 2017.

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Antes de continuarmos, vale o alerta: esse texto terá SPOILERSCalma, não será aquele tipo de spoiler que pretende entregar o final do filme ou coisa parecida, mas teremos algumas revelações. É impossível falar de Corra! e de sua premissa básica sem explorar o tema principal dele. Esse filme é destinado principalmente para aquela pessoa que afirma o seguinte: “eu não sou racista, eu até tenho amigos negros”, sendo que acha divertidíssima uma “piada de preto” e acredita que “o mundo está muito chato, não se pode mais falar nada!”.

Corra! | Assista ao final alternativo chocante do filme

O filme retrata a história do jovem fotógrafo negro Chris Washington (Daniel Kaluuya) que vai conhecer os pais da sua namorada, uma linda jovem branca de classe média, Rose Armitage (Allison Williams). Para isso, ele precisa viajar para a residência dos pais da garota que fica em uma mansão isolada nos Estados Unidos. Chris está inquieto com essa situação pois, além do nervosismo de conhecer os pais de Rose, existe o fato do rapaz ser negro. Sua namorada afirma que os pais não são racistas, muito pelo contrário, admiram os negros. Então, Chris parte para a propriedade dos Armitage e passará por momentos de tensão que vai fazer com que os expectadores não desgrudem da poltrona.

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A beleza de Corra! é a maneira que o mesmo aborda o racismo em suas sutilezas. Esqueça filmes como “Uma Outra História Americana” (1998) ou “Mississipi em Chamas” (1988), onde o racismo é escancarado. Aqui, o tema é percebido nas entrelinhas. Nas entrelinhas sim, mas muito claramente, e esse é o caminho que torna o longa-metragem tão importante: ele impacta diretamente à pessoa que, como afirmamos acima, não se diz racista por ter um amigo negro e considera “piada de preto” apenas uma brincadeirinha; ou “até acho alguns negros bonitos, mas prefiro uma loira”; ou “nossa, seu cabelo é até bonito, mas alisado seria melhor”; espero que vocês tenham entendido. No EUA, tal como no Brasil, isso se desenvolve desde a origem de seu processo colonizador, tendo raízes fortemente fincadas na escravidão da região.

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As Revoluções Inglesas e o impacto na colonização Norte-Americana

Antes de entendermos a história da colonização dos EUA, é importante sabermos o que estava acontecendo na Inglaterra, pois grande parte desse território foi colonizado pelos ingleses. Durante todo o século XVI, a dinastia Tudor (1485-1603) dominava o país com poder absoluto. Henrique VIII (1509-1547) fez a Reforma Anglicana, rompendo com o catolicismo e fundando sua própria religião, o Anglicanismo. Seus motivos foram, principalmente, políticos e econômicos, pois estava interessado nas vastas terras que a Igreja Católica tinha na região, recebendo grande apoio dos burgueses e da nobreza.

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Henrique VIII fundou a própria religião: o Anglicanismo (Foto: Reprodução de internet)

Os burgueses, principalmente a burguesia mercantil, cresceram em influência durante a época dos Tudor no poder. Em 1590, existia um órgão representativo burguês forte no parlamento inglês, conhecido como Câmara dos Comuns. Esse grupo rivalizava com a Câmara dos Lordes, de origem nobre e que apoiava o rei inglês. Isso não seria um problema muito grande se a burguesia, fortalecida, não crescesse em poder e status, impactando diretamente o poder da nobreza. Além disso, existia um problema religioso: enquanto a nobreza era anglicana e apoiava o rei, a burguesia era majoritariamente puritana (calvinismo inglês), sendo essa uma religião que também rompeu com o catolicismo e acreditava que o acúmulo de riquezas e bens materiais através do trabalho era um dos sinais da benção divina.

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A história da Inglaterra muda drasticamente com a morte de Elizabeth I (1558-1603), último monarca da dinastia Tudor, filha de Henrique VIII, que reinou de maneira absoluta. Quando ela morreu, sem deixar um herdeiro, começou um conflito em torno de quem iria assumir o trono inglês. O vencedor do “pleito” foi o Rei Jaime I (1603-1635), escocês. O parlamento, em especial com a burguesia, viu nele a figura perfeita para que suas demandas fossem atendidas. Em meio a essas polêmicas e o início dos conflitos entre o rei e o parlamento, um grupo de puritanos irá fugir para os EUA e dará início ao que, tradicionalmente, se considera a história da colonização norte-americana.

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Rei Jaime I assumiu, provocando a fuga de puritanos para os EUA (Foto: Reprodução de internet)

A América já era habitada quando esses puritanos chegaram. Além dos índios nativos, considera-se a presença de franceses e espanhóis, bem como ingleses que haviam desembarcado no local ainda durante a dinastia Tudor. Porém, o grupo composto por puritanos brancos e ingleses foi privilegiado pela narrativa histórica norte-americana, muito graças ao Pacto de Mayflower (Mayflower Compact), de 1620. Esse documento foi assinado no navio Mayflower que trouxe os puritanos da Inglaterra para os EUA e firmava um “pacto” onde o governo seria descentralizado, levando em conta leis justas e iguais para todos. Assim, colocando esse documento como o fundador dos EUA, essa ideia incutir um ideal de liberdade e igualdade no país desde o início da colonização. Além disso, estabelece desde o início uma colonização wasp (White, Anglo-Saxon e Protestant), ou seja, o branco, anglo-saxão e protestante. Assim, essa narrativa ignora o papel dos indígenas, franceses e espanhóis que contribuíram ativamente com a colonização.

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O racismo nos Estados Unidos, assim como no Brasil, é forte e recorrente. E, assim como no Brasil, tem como uma das suas principais origens o seu processo de colonização.

Porém, ocorreram duas diferenças fundamentais no processo de colonização: a região Norte nunca foi conhecida por ser muito fértil e com o clima próprio para agricultura. Conforme seus colonos iam descobrindo tais regiões, foram se concentrando em uma agricultura de subsistência, familiar, trocando gêneros com os estados e comunidades vizinhas. Enquanto isso, o clima e o solo do Sul eram adequados para uma agricultura de grande extensão, o latifúndio e o comércio atrelado ao mercado europeu. Assim, como ocorrido na América Portuguesa e menos na Espanhola, a utilização da mão de obra escrava negra foi ampla.

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A Guerra de Independência dos Estados Unidos (1775-1783) não marcou o fim da escravidão no país, tendo em vista que os grandes líderes “revolucionários” eram donos de terra, muitos deles escravistas. Mudou-se então o status político dos país, mas a sociedade, de maneira geral, continuou sendo controlada pelos mesmos homens de negócios e fazendeiros que era outrora. A situação permaneceu ainda durante a Marcha para o Oeste, movimento ocorrido nos EUA com a intenção de colonizar a região Oeste, até o momento pouco ocupada por europeus e dominada por nativos. Ocorrida principalmente depois de 1780 e com suas diretrizes estipuladas pelo Édito do Oeste (1787), assistiu-se, então, a uma corrida para o Oeste em busca de terras baratas e ao massacre de milhares de nativos em um dos episódios mais sangrentos na história norte-americana, sendo romantizada por Hollywood nos famosos filmes de “faroeste”. A corrida para o Oeste marcou uma integração maior entre os colonos, nativos e negros, resultando no enfraquecimento do Sul de maneira geral, tanto pelas fugas de escravos e de mão de obra barata para o Oeste, quanto pelo surgimento de Estados livres baseados no modelo nortista.

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Abraham Lincoln mal assumiu e já precisou lidar com a Guerra da Secessão (Foto: Reprodução de internet)

Essa situação vai ser uma das origens da Guerra da Secessão (1861-1865) que surge, em especial, relacionada com as terras aos quais se poderia praticar ou não a escravidão nos Estados Unidos. Além disso, ela caracteriza-se pelo conflito entre as propostas e interesses dos estados industrializados do Norte dos States e os estados ruralistas do Sul. O nome secessão tem origem ao interesse sulista de separação, criando assim os Estados Confederados do Sul. Os estados que não aderiram, conhecidos como “União” e tendo na presidência o recém-eleito Abraham Lincoln, não aceitaram essa separação e uma guerra civil foi iniciada. Embora a vitória tenha sido do Norte e a escravidão abolida, os sentimentos do Norte em relação a escravidão eram muito mais econômicos do que sociais. A escravidão, de maneira geral, é um entrave para a expansão do capitalismo na medida em que a massa escrava não forma um mercado consumidor com capital. Com a vitória do setor industrial do Norte e a existência de um país com grandes recursos naturais e mão de obra livre e barata disponível, vai ocorrer um importante desenvolvimento industrial, inserindo o país como um todo na lógica capitalista. Embora a escravidão estivesse abolida, a situação do negro norte-americano em maneira alguma se igualou a da “América Wasp”, com os mesmos ainda em situação de marginalização e abandono. No Sul, surgiram grupos racistas como a Klu Klux Kan, responsável pelo linchamento e assassinato de negros.

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No século XX, muitas leis de segregação racial foram criadas no Sul, proibindo o casamento entre negros e brancos, segregando negros em áreas, banheiros e transporte público. Vigoraram entre 1876 e 1965 as “leis de Jim Crow”, que negavam a cidadãos não-brancos uma série de direitos. Homens como Martin Luther King, Malcolm X, o caso “Rosa Parkas” e grupos como os “Panteras Negras”, cada qual de sua maneira, lutaram para a igualdade dos Direitos Civis nos EUA. Em 1964, o presidente norte-americano Lyndon Johnson promulgou a “Lei dos Direitos Civis”, legalmente aumentando os direitos civis dos negros.

Lyndon Johnson promulgou a “Lei dos Direitos Civis”, aumentando os direitos civis dos negros (Foto: Reprodução de internet)

Embora, atualmente, os direitos civis sejam destinados para todos, na realidade as coisas são bem menos claras.  O número de assassinatos é maior entre a população negra, bem como a maioria das pessoas com menor quantidade de renda serem negras. Em que pese a eleição de Barack Obama, negro, o mesmo foi sucedido por um empresário branco, Donald Trump. Diversos bairros considerados negros são os que demonstram os maiores índices de violência do país. Soma-se a isso o fato de, ainda no século XXI, a Klu Klux Klan estar bem ativa e ligada ao neonazismo, à supremacia branca e à polêmica que causou a derrubada da estátua de Robert Lee, líder dos exércitos do Sul dos EUA na Guerra da Secessão (muitos grupos consideraram Lee um herói injustiçado mesmo que seja um símbolo do racismo norte-americano).

O racismo velado e “Corra!”

O impacto desejado por Corra! se dá no fato de conseguir nos transportar para a pele de Chris. Dirigido por Jordan Peele, um diretor negro com experiência em esquetes de comédia na televisão norte-americana, o objetivo do filme é demonstrado logo no início: ao ser parado na estrada por um policial branco, apenas de Chris é exigido os documentos. O personagem principal, acostumado, procura seus documentos, enquanto a namorada se indigna questionando porque apenas ele tem de mostrar os documentos. Seria apenas uma coincidência o fato de Chris ser negro que somente dele foi exigida alguma documentação?

Cena de “Corra!”, onde apenas Chris tem os documentos exigidos pelo policial (Foto: Reprodução de internet)

A estadia do rapaz na casa do casal Armitage é recheada de cenas enervantes e que deixa o espectador com aquela sensação de que “há algo de errado com essas pessoas”. O senhor Armitage, vivido por Bradley Whitford, a todo momento faz piadas raciais que parecem inofensivas, mas que expõe o seu racismo velado. A senhora Armitage, interpretada por Catherine Keener, é mais retraída e parece sempre analisar o rapaz. Existem outras pessoas muito estranhas na mansão: o irmão de Rose, o desequilibrado Jeremy Armitage (Caleb Landry Jones) e os empregados negros, vividos por Betty Gabriel e Marcus Henderson, com suas expressões que transmitem apatia e sofrimento. Além disso, somos apresentados para um grupo de convidados do casal Armitage, que comparecem para uma festa. Outro personagem importante é o amigo de Chris, Rod Williams (Lil Rey Howery), alívio cômico do filme que pode incomodar alguns, mas peça importante da história. Podemos considerar o amigo sem noção sendo uma espécie de “voz na consciência” de Chris e do próprio espectador. Com suas piadinhas ao telefone, ele indica a todo momento que tem algo muito errado acontecendo, pois ele está sendo muito bem tratado para um negro.  Nervoso e assustado, Chris começa a investigar o que está acontecendo naquela mansão e com aquelas pessoas. Ao conhecer um dos personagens negros da festa, Andrew Logan King (Lakeith Stanfield), o personagem principal fica ainda mais inquieto. King observa-o de maneira muito incômoda, como se a todo momento quisesse falar algo, mas não consegue. Porém, acontece um dos momentos mais dramáticos do longa: esse homem negro se aproxima de Chris e grita: “Corra!”. Temos o título e o desenvolver das cenas mais tensas da produção.

Expressões dos empregados negros transmitem apatia e sofrimento (Foto: Reprodução de internet)

Não falaremos mais sobre o filme, nem o grande segredo do mesmo, que é revelado conforme a história se aproxima do seu fim. Esqueça os batidos recursos de “jump scares” utilizados de maneira abusiva em filmes de terror; esqueça, ainda, o próprio gênero da película: é um terror, sim, mas com um belo suspense, comédia e um thriller de arrepiar. É incômodo, com um mistério palpável, esquisito e que prende o espectador do início ao fim. Ele dá um recado claro e, dificilmente, o cinéfilo, gostando ou não do longa, não irá entendê-lo. O que diferencia Corra! dos demais filmes de terror (ou suspense, se você preferir), é a inteligência da sua história e os detalhes de sua execução. Uma crítica impactante ao racismo velado e costumeiro, tanto na sociedade norte-americana como na brasileira. Esse é um filme de terror sim, mas se trata do terror do racismo cotidiano que acontece nos EUA e, se quisermos colocar, no Brasil.

Pais da namorada de Chris: racismo velado e costumeiro (Foto: Reprodução de internet)

::: 5 filmes para saber mais

  • 12 anos de escravidão (2013), de Steve Macqueen – um retrato cru da escravidão norte-americana;
  • A História de Martin Luther King Jr (1994), de Thomas Friedman – conta a história de Martin Luther King que, um dos maiores destaques na luta pela igualdade dos direitos civis nos EUA;
  • Mississipi em Chamas (1988), de Alan Parker – baseado em fatos, aborda a investigação de dois policiais ao assassinato de 3 jovens negros por membros da Klu Klux Klan;
  • Uma Outra História Americana (1988), de Tony Kaye – demonstra o preconceito de maneira direta, abordando o neonazismo norte-americano;
  • A Cor Púrpura (1986), de Steven Spielberg – aborda a história de uma jovem estuprada pelo próprio pai, separada da família e “doada” para um homem que lhe faz de escrava e companheira.

::: 5 livros para saber mais

  • A História dos Estados Unidos (2010), de Leandro Karnal – aborda, com rigor acadêmico, parte da história norte-americana;
  • Os Yoruba no Novo Mundo (2005), de Stefania Capone – fala sobre a construção histórica do negro africano nos EUA, discutindo religião, etnicidade e nacionalismo negro;
  • O Sol é para Todos, de Harper Lee (1960) – romance premiadíssimo, conta a história do julgamento de um homem negro acusado de estuprar uma mulher branca nos anos 30;
  • A Vida Secreta das Abelhas (2001), de Sue Monk Kidd – livro aborda a história de uma menina branca que, nos anos 60, decide fugir com sua babá negra investigando a vida de sua mãe.
  • Nem preto, nem branco, muito pelo contrário (2011), de Lilia Moritz Schwarcz – uma abordagem histórica sobre o racismo no Brasil, em especial o “racismo velado”.

Danilo Firmino

Danilo Firmino é mestre em história, entusiasta de filmes de terror, RPG e filosofia. Rubro-negro, não perde a chance de ir ao Maracanã mesmo com o Flamengo não merecendo. Apaixonado por metal, mas permite MPB e músicas anos 80/90 em sua vida - mas isso é segredo.
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