"Roma" foi um dos filmes preferidos de Bruno Giacobbo (Foto: Netflix / Divulgação)

CRÍTICA #2 | ‘Roma’ (ou Amor), a nova obra-prima de Alfonso Cuarón

Bruno Giacobbo

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19 de dezembro de 2018

Baseado nas lembranças da infância do diretor mexicano Alfonso Cuarón e na relação afetiva deste com uma babá que trabalhava em sua casa, Roma é um retrato realista e meticuloso do dia a dia de uma família de classe média alta, na Cidade do México, no início dos anos 70. Só que o protagonismo não está nos pais, Antônio e Sofia, ou em uma das crianças que incendeiam aquele lar, Toño, Paco, Sofi e Pepe. Na verdade, no centro dos planos principais está Cleo (Yalitza Aparicio), a empregada de origem indígena que, zelosamente, serve àquelas pessoas, do raiar ao pôr do sol, com carinho e amor. E dela a câmera não se desgruda. Seja na hora de lavar o pátio da residência, de acordar a meninada com um beijo ou no instante de buscar o caçula na porta da escola. Tentar falar mais alguma coisa sobre a sinopse desta história é, como diriam os mais antigos, tentar enfeitar o pavão.

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Quando o burburinho de quem já tinha visto o longa-metragem começou a circular, para além dos muitos e numerosos elogios, houve quem tentasse rotulá-lo como datado e perverso. A tal perversidade estaria na forma como aquele núcleo familiar foi retratado. As acusações vão desde a perpetuação do status quo da relação patrão-empregado até a uma suposta falta de amor, em que pese, a todo momento, as crianças externarem este sentimento pela babá e ela por eles. Ao apontar o indicador para a obra enumerando estes problemas, seus acusadores dão mostras de que talvez desconheçam ou não tenham compreendido a proposta desta. A ideia do cineasta era prestar uma homenagem a Cleo da vida real e para isto retratou a época em que conviveu com ela da maneira como se recorda. Ao fazer isto, ele não toma partido, não endossa e não pede desculpas, apenas rememora.

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A sociedade mexicana, assim como a brasileira, teve suas fundações erigidas na dinâmica “Casa-Grande e Senzala”, só que, por lá, o papel dos negros coube aos índios. Tirar estas pessoas do quarto dos fundos, da área de serviço, é uma questão urgente e que ganhou força com o passar dos anos. O modo como encaramos ela, hoje, não é o mesmo como a sociedade encarava 50 anos atrás, no período em que o longa é ambientado. A família que os muitos descontentes com o retrato feito por Cuarón queriam ver, provavelmente, não existia em 1971. E se existisse, não era a dele. Querer atribuir um comportamento transformador da realidade àquele grupo de homens e mulheres seria o mesmo que descaracterizar totalmente a proposta original. Seria querer um filme distinto. Isto quer dizer que não existe amor nos relacionamentos mostrados? Não, significa apenas que ele não ultrapassa certas barreiras.

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Roma não é somente o nome do bairro onde cresceu e viveu o cineasta, é também um anagrama da palavra amor e o amor tem muitas formas. Não dá, em sã consciência, para acusar aquelas crianças de simulação. Elas ainda estão por fora das vicissitudes cotidianas, do aprisionamento imposto pela dinâmica supracitada. Quando falam que amam alguém, é porque amam este alguém. Não faz diferença para elas estarem sentadas na sala, vendo televisão, e, daqui a pouco, ouvirem a mãe pedir a Cleo que sirva um chá de camomila para o pai. Aquilo é o corriqueiro e não há uma perversidade visível nesta ordem. Da mesma maneira que é impossível maldar os sentimentos da babá por elas. Perverso é presumir que a reação desta, a um acontecimento na praia, é fruto do medo de perder o emprego. O que impele a moça a agir é o amor por aquela meninada e o receio de viver um novo trauma.

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E as patroas? Sofia e sua mãe, Teresa. Elas amam Cleo? Não há um indício disto, assim como não há declarações espontâneas ou forçadas de carinho recíproco. O que existe são situações pontuais de uma boa convivência naquela relação hierárquica. Sofia ralha com Cleo em um tom, às vezes, bem áspero? Sim. No entanto, quando a segunda enfrenta um “problema de saúde”, a primeira não a deixa desamparada. É o mínimo, dirão alguns, só que se olharmos a nossa volta, veremos que em tantas situações homologas nem o mínimo é feito. Ao longo do trajeto fílmico, ainda que separadas socialmente, é fácil traçar um paralelo entre ambas quando passam por uma situação parecida de dificuldade. E aí uma delas dispara: “Nós, mulheres, terminamos sempre sozinhas”. Não quando se tem uma a outra e, assim, Cuarón fez um longa que é também sobre o processo de empoderamento destas mulheres.

Foto: Netflix / Divulgação

Ganhador do Oscar por “Gravidade” (2013), o cineasta mexicano trabalha bastante com signos e estes estão espalhados aos montes pelo filme. Alguns não possuem uma explicação imediata e, provavelmente, serão debatidos pelas próximas gerações à medida que a fama e a reputação da obra se perpetuarem. O que é aquele homem vestido de Groot (minto, de árvore mesmo), cantando, enquanto um bosque pega fogo? Ainda não encontrei quem tivesse a resposta para esta dúvida. Em compensação, uma banda colegial (igualzinha àquela de “Benzinho”) passa duas vezes pela rua da casa número 21, onde trabalha Cleo. Estas passagens representam o começo e o término de uma fase de provação O momento de sofrer e de virar a chave para seguir em frente. Já diria Chico: “Estava à toa na vida, quando o meu amor me chamou, para ver a banda passar, cantando coisas de amor”.

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Existem ainda os segundos planos na obra do diretor. Reparem como quase sempre ocorre algo nos enquadramentos secundários. É assim nas cenas dentro do lar, quando a protagonista está realizando seus afazeres domésticos, mas, ao fundo, algum personagem está fazendo alguma coisa. É assim no cinema, quando um filme de guerra entrega o quão difícil ficará a vida de Cleo que, no primeiro plano, desfruta de raro momento de prazer com o namorado. E foi reparando nestes detalhes que me chamou a atenção um massacre de estudantes na rua. Esta cena é baseada em fatos reais que ocorreram em 10 de junho de 1971. Mais de 100 jovens foram mortos ao participarem de uma manifestação política. Ainda que a ação termine no centro do plano principal, ela começa no segundo e é um aceno para o futuro: cabe as próximas gerações tentar mudar aquilo que as anteriores não conseguiram.

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Idealizado, roteirizado, fotografado e dirigido por Alfonso Cuarón, Roma foi concebido como o projeto que começaria a mudar as regras do jogo no cinema americano e, apesar de ser uma produção da Netflix, ganhou circuito comercial nos Estados Unidos para que tivesse justamente condições de concorrer ao Oscar. A mudança aconteceria somente com “O Irlandês”, de Martin Scorsese, o próximo grande lançamento do streaming. Só que o sucesso foi tão estrondoso que, hoje, especula-se que o longa-metragem terá, mais ou menos, dez indicações. Alguns prêmios, como fotografia e filme estrangeiro, são dados com certos. E não é sem motivo. Será impossível encontrar algo mais belo em relação às imagens. Assistir à obra-prima do mexicano, uma história sobre o amor pintada com tintas que se assemelham a do neorrealismo italiano, é como testemunhar uma revolução: algo raríssimo.

Desliguem os celulares e excepcional diversão.

::: TRAILER

https://www.youtube.com/watch?v=ICR6YvcyyJc

::: FICHA TÉCNICA

Título original: Roma
Direção: Alfonso Cuarón
Elenco: Yalitza Aparicio, Marina Tavira, Marco Graf, Carlos Peralta, Diego Cortina Autrey
Distribuição: Netflix
Data de estreia: sex, 14/12/18
País: México
Gênero: drama
Ano de produção: 2018
Duração: 135 minutos

Bruno Giacobbo

Um dos últimos românticos, vivo à procura de um lugar chamado Notting Hill, mas começo a desconfiar que ele só existe mesmo nos filmes e na imaginação dos grandes roteiristas. Acredito que o cinema brasileiro é o melhor do mundo e defendo que a Boca do Lixo foi a nossa Nova Hollywood. Apesar das agruras da vida, sou feliz como um italiano quando sabe que terá amor e vinho.
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