CRÍTICA | ‘Cafarnaum’ é uma obra-prima de uma espécie de neorrealismo moderno e necessário

Bruno Giacobbo

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3 de novembro de 2018

Vocês certamente já devem ter ouvido falar em histórias de crianças que buscaram nas barras dos tribunais a emancipação, não? O ex-ator mirim Macaulay Culkin, por exemplo, acreditando que estava sendo roubado pelos próprios pais, conseguiu na Justiça o direito de administrar sua fortuna. Agora, imaginem um situação hipotética: um menino de 12 anos decide processar os pais. E o motivo não é uma eventual emancipação ou controle de uma bolada de dinheiro, mas, sim, o simples fato destes terem lhe dado a vida. Surreal, não é mesmo? Sim, todavia, é deste plot inacreditável que parte a história de Caos (Cafarnaum) o novo filme da cineasta libanesa Nadine Labaki, candidato do Líbano ao Oscar.

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Ganhador do Grande Prêmio do Júri, no Festival de Cannes 2018, o longa de Labaki narra a saga de Zain (Zain Al Rafeea) através de grandes flashbacks. O início pode parecer um pouco confuso, o espectador demora a se encontrar, só que, depois, todas as peças acabam se encaixando. Um dos incontáveis filhos (literalmente, não dá para saber ao certo quantos são) de um casal muito pobre, o protagonista ajuda a cuidar dos seus irmãos menores. A pobreza está ali, estampada, nos mínimos detalhes: no colchão onde dormem todos amontoados, no fato de que nenhuma das crianças foi registrada e por aí vai. E em meio a esta miséria, quem mais recebe atenção de Zain é Sahar (Cedra Izam), apenas um ano mais nova. A cena em que a garota menstrua pela primeira vez deixa claro todo este zelo dele por ela.

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Um dia, um problema em casa (vamos chamar assim para não dar spoilers e não revelar muito da trama), leva o garoto a fugir sem direção ou rumo. Vagando pelas ruas, ele encontra Rahil (Yordanos Shiferaw), uma imigrante etíope que dá um duro danado para cuidar do filho bebê Yonas (Boluwatife Treasure Bankole). Zain acaba ficando com eles por um tempo e, assim como fazia em casa, ajuda como pode, demonstrando enorme responsabilidade e maturidade. É uma dinâmica delicada e, provavelmente, provisória, afinal, apesar dos pesares, ele tem sua própria família. Só que o provisório se estende e quando mal percebemos os acontecimentos seguintes já nos levaram ao início de tudo.

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Terceiro longa-metragem de Nadine Labaki, a diretora diz ao que veio logo de cara, com uma belíssima panorâmica de uma favela. A trama se passa no Líbano, mas muito bem poderia ser no Brasil. O cenário nos é familiar: vielas apertadas e empoeiradas, barracos feitos com ripas de madeiras, telhas de amianto e pneus que seguram os plásticos que cobrem os buracos por onde a chuva poderia entrar. Mais tarde, outras imagens como a do esgoto correndo ao ar livre ou da água insalubre que sai da torneira confirmam esta impressão inicial. Isto ocorre porque a câmera tem o claro propósito da desnudar aquela realidade sofrida da mesma forma que desnuda todos os personagens. Em pouquíssimo tempo, graças a esta verdadeira aula de como filmar, estamos íntimos deles e plenamente inseridos na história.

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Outra opção acertada em Caos foi o uso de não atores, muito em função do menino Zain. O protagonista consegue transmitir naturalidade e segurança em tudo o que faz. E como a câmera fica praticamente o tempo todo focada nele, isto era fundamental. Suas desventuras e as agruras que enfrenta serão a razão de diversas e numerosas lágrimas. Atentem para instantes como, por exemplo, quando ele passeia com Yonas ou fala ao telefone e começa a relatar seu drama. São cenas bastante tocantes e, quase sempre, pontuadas por uma trilha sonora melancólica que mexe com os sentimentos do público. De certa forma, por todos estes detalhes, este filme me lembra Ciganos da Ciambra (2017), de Jonas Carpignano: são obras-primas de uma espécie de neorrealismo moderno e extremamente necessário.

Desliguem seus celulares e excepcional diversão.

*Filme visto no 20º Festival Internacional de Cinema do Rio de Janeiro

::: TRAILER

https://youtu.be/UrgWHfGEsbE

::: FICHA TÉCNICA

Título original: Cafarnaum
Direção: Nadine Labaki
Elenco: Zain Alrafeea, Nadine Labaki, Yordanos Shifera
Distribuição: Sony
Data de estreia: em breve
País: Líbano, França
Gênero: drama
Duração: 120 minutos
Ano de produção: 2018
Classificação: 16 anos

Bruno Giacobbo

Um dos últimos românticos, vivo à procura de um lugar chamado Notting Hill, mas começo a desconfiar que ele só existe mesmo nos filmes e na imaginação dos grandes roteiristas. Acredito que o cinema brasileiro é o melhor do mundo e defendo que a Boca do Lixo foi a nossa Nova Hollywood. Apesar das agruras da vida, sou feliz como um italiano quando sabe que terá amor e vinho.
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