Crítica de Filme | A Pele de Vênus

Tatiana Reuter

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23 de setembro de 2015

Há sempre uma segurança presumida em assistir os novos filmes dos grandes diretores. Não precisamos do trailer, ainda que a curiosidade seja grande. Basta saber que está lá o devido crédito, esperar alguns grandes atores e um filme, no mínimo, interessante. Às vezes damos azar e o diretor decepciona, mas é difícil. E Roman Polanski reafirmou sua qualidade em A Pele de Vênus.

Um diretor de teatro, Thomas (Mathieu Amalric) é convencido por uma atriz, Wanda (Emmanuelle Seigner) a fazer o teste para sua nova peça. É a adaptação do texto de Sacher-Masoch, A Vênus das Peles (1870) – cujo teor fez nascer o termo masoquismo. Os dois passam o texto juntos em um teatro fechado e isso será o filme. Há um grande risco em encerrar um longametragem em uma locação, mas não é novidade para Polanski. Muito já foi visto na Trilogia do Apartamento lá atrás, com Repulsa ao Sexo (1965), O Bebê de Rosemary (1968) e O inquilino (1976). Havia outras locações, mas o grosso da ação era nos apartamentos. Os três filmes merecem atenção, os dois primeiros ainda mais – são perfeitos. Da mesma forma, o penúltimo filme – O Deus da Carnificina (2011) – é uma adaptação teatral voltada ao cinema. Aqui há um confinamento em apartamento – dois casais discutem sobre o comportamento de seus filhos e acabam reproduzindo os desvarios e intolerâncias que permeiam a educação das crianças com humor negro audacioso e grandes interpretações – reflexo do contexto social e familiar em que vivem, concluiremos.

Ao contrário dos três primeiros, cujas ações principais eram pensadas em isolamento, delírio e silêncio dos protagonistas, O Deus da Carnificina e A Pele de Vênus, por usarem o teatro, são pautados na palavra, em diálogos mordazes extremamente bem construídos – além de não focarem em apenas um personagem. Não há falação, mas uma troca de texto útil que constrói a dramaticidade dos assuntos ali abordados. Se com A Vênus das Peles, Sacher-Masoch nos trouxe o masoquismo, podemos no mínimo, esperar alguma diversão ali – em pitadas de humor e alguma crueldade, se a palavra não for pesada demais.

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O diretor recebeu o texto de Masoch um ano antes de produzir e, por ver ali uma obra original em que o homem é desmoralizado por uma mulher numa relação incomum de inversão de poder, achou interessante, além do desafio de prender o espectador usando as restrições já citadas. Mathieu e Emmanuelle estão fascinantes e sustentam a dramaticidade em planos criativos, estudados para dar à Wanda, desde o início, uma malícia que vamos apreendendo aos poucos, enquanto Thomas vai se deixando seduzir e entra em um jogo que se torna gradualmente complexo e perigoso. Há os exageros de atuação pertencentes ao teatro que se intercalam na sutileza do cinema quando estão fora de cena, atendendo ao telefone, tomando café. Aí também há um jogo com o espectador, cuja atenção é mantida na metalinguagem da ficção: são dois atores (Mathieu e Emmanuelle) interpretando no teatro uma atriz Wanda e Thomas, seu diretor, interpretando outros personagens – a Wanda que domina e Severin, seu escravo.

Em um desenlace surpreendente, ficamos boquiabertos entre a entrega de Severin/Thomas às tramas de Wanda/Wanda e até o que nos parece ridículo funciona em cena, tamanho o hibridismo do que é a ficção do texto da peça com seu ensaio. A fotografia de cena, cara às duas artes visuais é reconhecida aqui com maestria e novamente vem a metalinguagem, quando a própria Wanda é quem maneja as luzes do palco. Esse conhecimento, que deveria ser estranho a Thomas, indica que aquela aspirante à atriz é um pouco mais do que isso – mas ainda é cedo para dizer. O fato é que o filme extrapola o entretenimento – nos dá margem para relacionar assuntos agora frequentes, das relações de poder entre os gêneros, das relações antes ditas como perversas e com a ajuda da literatura pop estão quase naturalizadas, da objetificação da mulher. Essa complexidade em textos corridos e adaptados ao cinema e ao teatro – o livro corre em outro ritmo – e a permanência de um humor ácido, reafirmam a qualidade esperada de Polanski e nos faz aguardar o próximo filme com alguma ansiedade.


FICHA TÉCNICA
ênero: Drama
Direção: Roman Polanski
Roteiro: David Ives, Roman Polanski
Elenco: Emmanuelle Seigner, Mathieu Amalric
Produção: Alain Sarde, Robert Benmussa
Fotografia: Pawel Edelman
Montador: Hervé de Luze, Margot Meynier
Trilha Sonora: Alexandre Desplat
Duração: 96 min.

Tatiana Reuter

Baiana residente no Rio. Produtora na tv, cineasta por formação. Vivo a base de vinho, pimenta e café forte. Escrevo no extraforte.blogspot.com e sou pós-graduada em Cinema Documentário. Programo o ano entre feriados e viagens e trafego entre Beatles e Gonzagão, fotos e livros.
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