Crítica de Filme | As Mil e Uma Noites: Volume 2, O Desolado

Bruno Giacobbo

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17 de novembro de 2015

O segundo volume da ambiciosa trilogia involuntária do cineasta lusitano Miguel Gomes, com inspiração na clássica obra da literatura árabe, mas jogando luz sobre os fatos ocorridos em Portugal, entre agosto de 2013 e julho de 2014, As Mil e Uma Noites: Volume 2, O Desolado, é dividido em três historias que discorrem, entre outras coisas, sobre a incapacidade governamental em fornecer serviços minimamente decentes para a população, o descaso desta pelas regras de convivência em sociedade e a desigualdade social entre pessoas que, muitas vezes, estão separadas por apenas alguns metros quadrados.

O primeiro conto, “A Crônica da Fuga de Simão Sem Tripas”, traz a história de um criminoso, vivido pelo ator Chico Chapas, procurado em todo país pela morte de mulheres, entre elas, de sua esposa e de sua filha. Apesar dos crimes cometidos e da fuga que funciona como admissão de culpa, estranhamente, ele consegue escapar das garras da Justiça graças à ajuda de populares, inclusive de outras moças. Este, talvez, seja o momento onde a crítica ao Poder Público português aconteça da forma mais velada. Em uma alusão ao que ocorre também nos países do Terceiro Mundo, a glorificação de bandidos costuma acontecer quando estes ocupam os espaços deixados vazios pelos agentes da lei. Os traficantes colombianos e os dos morros cariocas já nos ensinaram esta lição.

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A segunda história é, de longe, a mais pertinente, deste capítulo, como crítica aos governantes que não cumprem as funções para quais foram eleitos. “As Lágrimas da Juíza” mostra as dificuldades que uma magistrada (Luísa Cruz) encontra na hora de julgar um caso aparentemente simples: endividados, os locatários de um imóvel roubaram os bens do senhorio, este, inconformado, decidiu processá-los. O problema é que o caso ganha desdobramentos inesperados. Os réus conseguem imputar a culpa ao próprio proprietário. Por sua vez, este diz que seguiu o conselho ruim de um gênio. Sucessivamente, a responsabilidade vai sendo atribuída a outros até chegar à versão local do INSS. Com um sarcasmo generoso, o dedo é apontado para todos: políticos e cidadãos que insistem em levar vantagem a qualquer custo.

Um simpático cãozinho é o fio condutor do conto batizado de “Os Donos de Dixie”. Glória (Margarida Carpinteiro) achava que seu animal de estimação estava morto até receber a visita de um cachorro igual. Vizinha de um casal enfermo, Humberto (João Pedro Bénard) e Luisa (Teresa Madruga), um pouco por pena, em parte para se livrar do fardo de ajudá-los, ela decide deixar o bicho com eles. Só que, como narra Xerazade (Crista Alfaiate), Dixie é paciente e bastante amoroso. Logo, ele fará a alegria, também, dos desempregados, Vasco (Gonçalo Waddington) e Vânia (Joana de Verona), e de muitos outros. De casa em casa, vemos a desigualdade social que aflige Portugal. Há, ainda, um toque sobrenatural que, em uma rápida ilação, pode ser associado à fé daqueles que acreditam sempre.

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Filme escolhido pelos portugueses para tentar uma indicação ao Oscar 2016, como quase toda obra com estrutura coral, As Mil e Uma Noites: Volume 2, O Desolado, sofre um pequeno desequilibro entre suas histórias. “As Lágrimas da Juíza”, onde se destaca a atuação de Luísa Cruz, é a melhor delas pelo uso bem empregado do sarcasmo. Contudo, nada preocupante. O resultado final é ótimo e confirma a impressão, vista na parte um, de que a mistura entre ficção e realidade pode dar um fado cinematográfico da melhor qualidade.

Desliguem os celulares e ótima diversão.

Leia também:

As Mil e Uma Noites: Volume 1, O Inquieto

As Mil e Uma Noites: Volume 3, O Encantado

FICHA TÉCNICA:
Direção: Miguel Gomes.
Roteiro: Telmo Churro, Miguel Gomes e Mariana Ricardo.
Produção: Sandro Aguilar, Luís Urbano e Thomas Ordonneau.
Elenco: Crista Alfaiate, João Pedro Bénard, Margarida Carpinteiro, Chico Chapas, Carloto Cotta, Luísa Cruz, Joana de Verona, Eduardo Frazão, Pedro Inês, Lucky, Adriano Luz, Carla Maciel, Teresa Madruga, José Manuel Mendes, Manuel Mozos, Gracinda Nave, Américo Silva e Gonçalo Waddington.
Direção de Fotografia: Sayombhu Mukdeeprom.
Montagem: Telmo Churro, Miguel Gomes e Pedro Filipe Marques.
Duração: 131 minutos.
País: Portugal.
Ano: 2015.

Bruno Giacobbo

Um dos últimos românticos, vivo à procura de um lugar chamado Notting Hill, mas começo a desconfiar que ele só existe mesmo nos filmes e na imaginação dos grandes roteiristas. Acredito que o cinema brasileiro é o melhor do mundo e defendo que a Boca do Lixo foi a nossa Nova Hollywood. Apesar das agruras da vida, sou feliz como um italiano quando sabe que terá amor e vinho.
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