Crítica de filme: “A Criada”

Pedro Esteves

O filme que me fez duvidar de Sundance.

Paulo Freire* dizia: “Quando a educação não é libertadora, o sonho do oprimido é ser o opressor”.

cartazA Criada, filme chileno, dirigido e coroteirizado por Sebastián Silva, ganhou o Grande Prêmio do Juri e Melhor atriz para Catalina Saavedra, no Sundance Festival em 2009, além dos prêmios de Melhor filme nos Festivais de Guadalajara e Cartagena 2009. Foi exibido aqui no Festival do Rio de 2010, posteriormente ficou em exibição na rede de canais fechados Telecine e, só agora, foi levado às telas grandes. O filme conta a história de uma empregada doméstica que trabalha há 23 anos em uma casa de classe alta e se sente ameaçada quando sua patroa contrata outra empregada para auxiliá-la. A discussão trazida é a relação de opressão que a criada vive, que as criadas vivem, em relação com sua psique e com seu social.

Tive oportunidade de ver A Criada no Festival do Rio e, diferentemente da maioria, que aplaudiu o filme, saí indignado e consternado. Fiquei tão consternado que coloquei na cabeça que os prêmios recebidos pelo filme foram: de melhor diretor e atriz principal, dois elementos impecáveis no filme, tenho que admitir. A atriz que faz a criada, Catalina Saavedra, está perfeita, uma verdadeira oprimida, e a direção impregnou um ritmo e uma estética muito condizentes e bem elaborados, não que seja inovadora, longe disso, mas muito bem feita. Qual foi minha surpresa quando redescobri que o filme havia vencido não melhor direção, mas melhor filme e não só no Sundace, mas em outros dois festivais? Meu queixo caiu e decidi vê-lo de novo quando pudesse, o que fiz via Telecine, convencido de que eu não entendera o filme, que todo mundo tivera um bom entendimento e eu ficara perdido, sem compreender algo. Para minha surpresa não achei nada de novo que pudesse mudar minha opinião, não achei no filme algo que o levasse a receber tantos aplausos e prêmios, por isso tive que recorrer ao único caminho possível neste caso: olhei para a cultura que nos forma e acho que entendi. Calma, vou tentar explicar mais a frente.

A discussão do filme tem como fio condutor a criada do título, personagem muito bem construída, que assume seu papel de oprimida, obediente, tímida, veneradora do opressor (essa faceta muito bem exposta quando ela deseja e compra a mesma camisa da patroa). Por fim, uma pessoa que é coisificada, animalisada, ela torna-se mais um objeto da casa. A personagem é a personificação de uma pessoa que não tem outra vida, que se tornou realmente parte daquela casa, que se nutre da existência de seus patrões. Na verdade ela está tão oprimida que beira a linearidade, a superficialidade. Beira, mas não cai nessa, principalmente pela atuação impecável da atriz principal e pela relação que a personagem tem com a filha dos patrões,marcada pelo ciúme e implicância.

a-criadaInfelizmente, fora a personagem principal e a filha, parece que não podemos falar mais em profundidade no filme e, talvez ,nem mais de humanidade. Não há sequer um personagem que não esteja ali para cumprir uma função, que não seja uma caricatura para provar algo. A família, os patrões, é composta por um casal e dois filhos adolescentes, um menino e uma menina. Ricos, vivem em uma casa grande com piscina e quintal, na cidade. Todos são pessoas boas para com a criada, preocupados com ela e uns com os outros, não há praticamente conflito nenhum no seio familiar, é uma família dos sonhos. O único mérito (se é que pode ser considerado mérito) ao se forçar uma família assim para a discussão proposta, seria o de que a opressão existe mesmo se o opressor for inconsciente disso e for “bom” com o oprimido. A opressão seria, pois, da condição histórica sociocultural em que a empregada vive, essa era minha aposta no começo do filme para justificar aquela inverossímil família, que até se sacrifica pela empregada. Novamente, estava errado.

No decorrer do filme, temos as empregadas que vêm auxiliar a criada. Elas surgem uma após a outra para cumprir funções e o principal papel delas na trama é preparar o terreno para a óbvia empregada que virá de fora, de um mundo diferente, uma empregada nova no ramo, uma empregada que ousa fazer cooper depois do horário de trabalho (se seus patrões deixarem, é claro), que quer algo diferente além de ser empregada e, assim, salvará nossa oprimida, ensinando-lhe que o mundo é mais que a casa dos seus patrões e que a família que a domina . No fundo, basta ela querer mudar. Pera! Acho que comecei a falar de um livro de autoajuda… Não, não, to falando do filme mesmo, vamos continuar.

O que essa nova personagem faz, nossa heroína misteriosa: consegue cativar nossa oprimida e a faz viajar com ela para um natal mágico no campo, sim, um natal mágico, no qual todo mundo pode ser feliz, o primeiro natal fora da casa de seus patrões em muitos anos. Um natal, repito, tão mágico, que até um homem da família da nova empregada se encanta pela criada e a deseja sexualmente. Esta, de tão oprimida que é, nem sexo se sente digna de fazer, em verdade, ela é virgem. Ao final desta viagem, nossa oprimida descobre que existe sim um outro mundo, que um outro mundo é possível e só depende dela. Pera. Não, ainda não é um livro de auto-ajuda, é o filme. Continuando.

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Vemos então a transformação dela, que agora não tem mais o auxílio de nossa misteriosa heroína (que deve ter voltado para a lista de clichês ou entrado em outra história de fantasia e foi salvar outras fracas e indefesas), tudo previamente esquematizado e calculado, com os pontos de virada nos locais certos, com as personagens secundárias posicionando-se da forma certa para a situação certa, nada escapa ao maniqueísmo do roteiro, tudo foi planejado para a cena final (desculpem o spoiler, mas não faz muita diferença, eu garanto, não há surpresa): o jogging, o cooper, que a oprimida resolve fazer sozinha, simbolizando a sua liberdade (claro, com permissão dos patrões). No fim, o filme se mostra um libelo a favor da liberdade, exclamando: “oprimidos do mundo, cooper-vos”.

Paulo Freire estava errado, não é preciso lutar para se transgredir a posição de oprimido, basta fazer um cooper e esquecer um pouco seu trabalho. Se ele soubesse disso, haveria feito uma revolução no mundo, ao invés de alfabetizar adultos, ajudar escravos a se libertarem por conta própria depois de muito trabalho, bastaria que os tivesse ensinado a correr. Vou agora mesmo falar com minha empregada para ela fazer cooper, acho que depois disso nem mais salário vou precisar pagar a ela, com o que ela ganha já não pode aproveitar do consumo que seus patrões aproveitam, já não lê tanto quanto a gente, não vai tanto ao cinema, não viaja quando “pode” no fim de semana para a casa de campo, então o dinheiro não faz diferença, a escolarização não faz diferença, toda sua história de vida não faz diferença, basta fazer cooper e ela será livre.

nana2Não, não entendi, não sei, não é possível que isso tenha ganhado melhor filme em qualquer lugar do planeta, eu me recuso a ter essa desilusão com a humanidade. Como explicar? Fui, como disse acima, a nossa cultura contemporânea, só podia estar nesta a resposta para a tamanha aceitação a este filme que envergonharia Paulo Freire (provavelmente se ele o visse voltaria ao Chile para lutar pelos oprimidos de novo).

Em nossa cultura, midiatizada, na qual não há tempo para aprofundamento das questões, em que tudo é dado pronto e o significado é mero indicio, suplantado pelo seu significante, nada pode exigir um segundo pensamento, nada pode pedir estudo ou paciência. Só essa cultura pode justificar que uma obra em que a mensagem é tão rasa, tão sem base, tão absurda e, no mínimo, antiética para com os que lutam conta a opressão, seja tão venerada. Só uma sociedade assim e um público composto pelos patrões, é claro.

BEM NA FITA: Excelente direção e atuação da atriz principal.

QUEIMOU O FILME: Roteiro raso, personagens rasos, situações rasas, tudo maquiavelicamente arquitetado para a produção de uma mensagem de livro de autoajuda de terceiro escalão, que ainda por cima é antiética.

FICHA TÉCNICA:

Nome: A Criada (La Nana)
Diretor: Sebastián Silva
Elenco: Catalina Saavedra, Claudia Celedón, Alejandro Goic, Andrea García-Huidobro, Mariana Loyola, Agustín Silva, Darok Orellana
Produção: Gregorio González
Roteiro: Sebastián Silva, Pedro Peirano
Fotografia: Sergio Armstrong
Duração: 95 min.
Ano: 2009
País: Chile/México
Gênero: Comédia Dramática
Cor: Colorido

*Considerado um dos maiores educadores que o mundo já teve, um brasileiro que lutou contra a exploração, as injustiças, indignado com todas as maldades humanas, produtor de uma teoria educacional que alcançou o mundo e influencia até hoje inúmeros educadores e educadoras. Foi exilado no Chile quando a ditadura militar deu o golpe no Brasil.

Pedro Esteves

Cineasta, fotógrafo, pedagogo e enoconsultor. É curioso por natureza, chato por opção e otimista por realismo. Midiaeducador no ensino formal, expõe seus trabalhos artísticos em facebook.com/estevesarte e presta consultoria em vinhos a partir de www.primusvinho.com.br .
NAN