Crítica de Filme | O Menino e O Mundo

Pedro Esteves

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17 de janeiro de 2014

O Menino e O Mundo, segundo longa-metragem da Filme de Papel, dirigido, roteirizado e montado por Alê Abreu (Garoto Cósmico, 2008), trata da história de um menino que, “sofrendo com a falta do pai, deixa sua aldeia e descobre um mundo fantástico dominado por máquinas-bichos e estranhos seres. Uma inusitada animação com várias técnicas artísticas que retrata as questões do mundo moderno através do olhar de uma criança”.

Primeiro, esqueça Walt Disney e as demais empresas de animação standard que inundam os cinemas mundiais e nacionais com suas histórias, muitas vezes, simples e rasas, expostas através de uma linguagem fílmica narrativa clássica, e que poderiam ser contadas em filmes não animados, feitos com pessoas reais. Esqueça tudo isso, porque O Menino e O Mundo é uma animação no sentido mais puro.

Trabalhando com um desenho 2D sobre um fundo branco como papel, Abreu emociona o espectador de uma forma que a grande indústria dificilmente conseguiria fazer, pois trata do mundo real de forma humana, através do olhar metafórico de uma criança. A sinopse, exposta acima, é apenas um chamariz que não consegue (e não pode, em tão poucas palavras) expressar toda a complexidade e a profundidade da que, talvez, venha a ser a melhor animação do ano e, com certeza, uma das melhores dos últimos tempos.

Ao fundo as cidades piramides e no primeiro plano a alegria das cores dos personagens contrastando com o quase monocromático cenário.

Ao fundo as cidades piramides e no primeiro plano a alegria das cores dos personagens contrastando com o quase monocromático cenário.

A história do menino acompanha a história de um capitalismo tardio (mas, de certa forma, também de seus primórdios até a contemporaneidade), expondo o universo do ciclo do algodão no mundo, sem nunca deixar de ser um filme infantil com profunda poesia, e tudo isso sem que os personagens falem em um língua inteligível. O percurso começa com um simples dançar de desenhos coloridos, como belas ligações atômicas, que se revelam uma pedra vista pelo menino. Estamos no seu universo lírico, que nos carrega para uma inebriante floresta de sonhos e brincadeiras através de um jogo de imagens e planos que não parece ter fim. Depois, há o mundo do campo embelezado pelo olhar ingênuo do personagem principal, mas que é logo confrontado com um estranho maquinário-bicho.

O mundo feliz e alegre do menino é arruinado pela necessidade de seu pai partir em busca de emprego, pois sua seca terra não permite mais a sobrevivência da família. Pouco tempo depois, morrendo de saudade, o menino parte para encontrá-lo e, nessa tentativa, vai descobrindo o mundo. A beleza imagética é construída pela imaginação da criança, pela forma como ela vê as coisas do mundo: o trem-inseto que serpenteia pelo caminho, os maquinários-bichos, as “danças” dos trabalhadores, a cidade-pirâmide, a cidade-futurística, etc.

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Todas essas belas imagens, no entanto, não são gratuitas, puro fetichismo, mas metáforas da vida real, da estratificação social, das desigualdades e da condição dos seres humanos no sistema do Capital. No campo, há uma incrível variedade de cores para reproduzir a natureza primordial; na cidade, as cores tornam-se opacas para materializar a infinidade de anúncios. Há ainda a cidade do futuro, que é no presente, toda fechada em sua redoma, inalcançável, símbolo maior do poder imperial e, por isso, marcada pela ave símbolo dos impérios.

A criança, pobre, mas cheia de esperança e imaginação, percorre todos os caminhos do ciclo do algodão: do campo às fabricas, do sertão às favelas, do sonho ao pesadelo. O menino é no mundo e com o mundo em busca de si, de sua história e da vida. A identidade que vai sendo construída caminha com e nos traços do desenho, com e no ciclo do algodão, com e a partir da alegria e da força que o trabalhador pobre carrega. Fator-chave na narrativa e na estética do filme, a alegria é construtora da esperança do reencontro, a alegria é a memória do pai e a possibilidade do futuro que se materializa em música, não apenas como o som propagado por caixas acústicas sintéticas, mas como tons coloridos que escapam pelos instrumentos do povo, pela flauta do pai e do menino. O som é guardável em um pote, para que se mantenha memória e esperança. A música leva o mundo e as suas cores, leva os traços e o cenário, leva a criança e nós mesmos para um pai que não está lá, mas no próprio menino.

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No mundo, o menino descobre que quem está no comando faz sua própria música, mas esta é metálica e bombástica, não dando espaço para o sonho alegre do povo. Sonho este que é exuberantemente construído em forma de fénix, uma fênix de mil cores, forte e viva, mas que tem um inimigo declarado (com o qual ela luta), preto como a escuridão, que é, na verdade, um bicho-canhão.

O filme, pois, não se entrega ao raso dos filmes standard, não se entrega ao realismo barato e nem se entrega ao opressor, pois não há falta de esperança. Ele denuncia o sistema do Capital sem dó e receio, mas também sem esquecer o ser humano, compartilhando conosco a alegria, a tristeza e a esperança que nos move. O principal, porém, talvez seja que ele fala isso tudo sem nunca deixar de ser um filme infantil, ainda que dialogue diretamente com os adultos. Ou será o contrário? É, enfim, um filme para todas as idades, feito por gente grande, mas com espírito de criança.

BEM NA FITA: Praticamente tudo, o tornando talvez um dos melhores filmes do ano.

QUEIMOU O FILME: Nada que valha nota.

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FICHA TÉCNICA:

Direção: Alê Abreu
Produção executiva: Tita Tessler e Fernanda Carvalho
Música original: Gustavo Kurlat e Ruben Feffer
Roteiro: Alê Abreu
Montagem: Alê Abreu

Pedro Esteves

Cineasta, fotógrafo, pedagogo e enoconsultor. É curioso por natureza, chato por opção e otimista por realismo. Midiaeducador no ensino formal, expõe seus trabalhos artísticos em facebook.com/estevesarte e presta consultoria em vinhos a partir de www.primusvinho.com.br .
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