Crítica de Filme | Uma Nova Amiga

Pedro Esteves

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16 de julho de 2015

Os filmes de Ozon poderiam ser resumidos no jogo dos seguintes substantivos: realidade, desejo, percepção e imaginação. Contudo, como toda obra que penetra nas relações humanas, se prender só a isso seria simplificar o impalpável que a arte pode trazer. Suas obras costumam criticar a família burguesa e suas composições tradicionais, os papeis sociais assumidos e os sexuais, principalmente o papel feminino (que em seus filmes tem uma grande força). Ele penetra psicologicamente no universo de suas personagens para deflorar o nosso próprio mundo moral. O mais impressionante é a capacidade que ele tem de dominar a linguagem cinematográfica do roteiro a finalização – seus atores, por exemplo, estão geralmente soberbos. Ozon é, acima de tudo, um realizador virtuoso, nada em seus filmes parece está fora do lugar, desde o enquadramento, ao som com que o personagem bebe seu whisky.

Uma Nova Amiga resgata todas as questões caras ao diretor e nos faz enfrentar os nossos próprios valores morais. No filme, Claire (Anaïs Demoustier, em atuação soberba), cuja melhor amiga, Laura (Isild Le Besco) morre tragicamente, deixando David (Romain Duris, fantástico, cheio de camadas) viúvo com um filha recém-nascida, resolve cumprir sua promessa de infância a amiga e cuidar de David e de sua filha. Contudo as coisas são mais complicadas que ela poderia imaginar, além de sua dor ela terá que enfrentar, entre medo e sensibilidade, a sua e a relação de David com os estereótipos de gênero.

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É uma história em que, depois do surgimento do conflito principal, cada passo dado não acontece através de grandes acontecimentos, mas de ações mundanas. Não há alardes e reviravoltas chocantes, há apenas pessoas tentando lidar com situações que elas não entendem totalmente em um mundo cheio de regras estabelecidas. Está, assim, nas personagens principais a matéria prima do filme, cada emoção que elas tem transparece em tela e apresentam um mundo de medos, contradições e desejos. Claire é recatada, fogosa, medrosa e corajosa, nos fazendo de cúmplice da trama, nos deixa desnorteados como ela. Já David nunca cai no banal, parece que vai sair da tela e mostrar que é humano e não uma projeção. A beleza no jogo entre as duas personagens é o desejo perverso e os papeis sociais. A amiga, fantasma sempre presente, é o motor dessa relação e da confusão desejante em que esta recai.

A fotografia desse drama que, como sempre, dialoga com inúmeros gêneros (o erro são dos gêneros, pois a vida não os tem) é composta por inúmeros closes em uma busca das emoções que cada personagem sente, ao invés da imagem que cada um passa. Assim, Ozon e Pascal Marti (que fez o último trabalho do diretor, Jovem e Bela) aproximam os espectadores da humanidade de cada personagem, de forma que possamos julgar não só pelo papel social, mas, principalmente, pelo sentimento de cada indivíduo.

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O som é uma história a parte, postos no lugar correto para construir os sentimentos das personagens e denunciar os caminhos da história. Preste atenção na trilha sonora, principalmente na cena do shopping, em que a única música em inglês toca, Hot N’ Cold (Katy Perry), falando das duas personagens. Aproveite e repare na montagem assumida no trecho, que nos remete a filme de Hollywood. A montagem de Laure Gardette (que fez alguns filmes de Ozon, dentre eles o magnífico Dentro da Casa) é novamente impecável, nos prendendo a desenrolar do drama em um ritmo que nunca parece cair e que cada vez nos suga mais para dentro e nos sensibiliza.

O filme é perfeito? Não. Existe um problema na estrutura do roteiro, pois ele tem uma clara montagem hollywoodiana e acaba por se tornar previsível, mesmo que no final (SPOILER ALERT) o diretor tente quebrar essa previsibilidade ao não deixar claro o desfecho. O que, na realidade, atrapalha o desenvolvimento da história, pois acaba por negar a estrutura que o próprio filme assumiu, faltando a ação de resolução do conflito.

Queria, para terminar, ressaltar os planos iniciais, em que uma noiva está sendo maquiada. Só por eles valeriam a pena ir ao cinema, pois brincam com nossa percepção ao mesmo tempo em que destrincham toda a trama que estar para se formar e, fazem isso, nos assustando.

FICHA TÉCNICA

Título original: Uma Nova Amiga (UNE NOUVELLE AMIE)
Direção: François Ozon
Roteiro: François Ozon
Produção: Mandarin Cinéma
Fotografia: Pacal Marti
Edição: Laura Gardette
Gênero: Drama
País: França
Ano: 2014
Duração: 107 min
Elenco: Romain Duris, Anaïs Demoustier, Raphaël Personnaz, Isild le Besco

Pedro Esteves

Cineasta, fotógrafo, pedagogo e enoconsultor. É curioso por natureza, chato por opção e otimista por realismo. Midiaeducador no ensino formal, expõe seus trabalhos artísticos em facebook.com/estevesarte e presta consultoria em vinhos a partir de www.primusvinho.com.br .
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