Crítica de Teatro: “Adoração”

Anna Cecilia Fontoura

No Pequeno Dicionário da Língua Portuguesa, Celso Pedro Luft define Adoração: “render culta a ( divindade); amar em extremo”. Mas, se você parar para refletir, essas duas definições são quase contraditórias, já que a primeira seria equivalente a idolatria, ou seja, tomar algo como sagrado e colocá-lo no pedestal. E assim amá-lo, só olhando, sem tocar, por ser algo tão superior ao adorador… Já a segunda definição, passa a sensação de algo mais palpável, carnal, que nos remete até ao ciúme, ao passional… Essas duas definições tão distintas para a mesma palavra podem ser encontradas no monólogo – com o nome mais do que apropriado – “Adoração” que esteve em cartaz no Instituto do Ator, na Lapa, até o último dia 27. A temporada, que teve encenações todas as segundas, às 20h, desde 08 de abril, contou até com a presença ilustre, na plateia, do cineasta Nelsinho Rodrigues (filho do finado autor) em uma das apresentações.

Nelsinho Rodrigues, cineasta e filho de Nelson Rodrigues, prestigiou a temporada de "Adoração" na Lapa Fotos: Divulgação

Nelsinho Rodrigues, cineasta e filho de Nelson Rodrigues, prestigiou a temporada de “Adoração” na Lapa
Fotos: Divulgação

O espetáculo reúne dois textos raros escritos por Nelson Rodrigues, nos anos 30, que trazem à tona as temáticas: Desejo e Morte. A peça começa com a atriz Sandra Alencar interpretando uma menininha que brinca de Amarelinha (que ironicamente tem o Céu, é claro..) enquanto conta sobre o relacionamento entre um casal de adolescentes da vizinhança. Os dois eram chamados de “namoradinhos”, mas esse rótulo, incomodava demais o jovem enquanto alegrava muito a garotinha enamorada. Depois que os inocentes pombinhos resolvem “carnalizar” a relação (e olha que nem chegou a ser consumada biblicamente) o garoto se afasta e a menina cai doente. Assim é o conto “Uma Menina Foi Para O céu” que é maravilhosamente encenado por Sandra. Todo sentimento de culpa do rapazinho, outrora apaixonado, por ter acabado com parte da inocência da falecida e o desespero da mãe que perdeu sua jovem filha são expressos pelo jogo de luzes (claro e escuro) e perfeitamente sentidas pelo público através da brilhante interpretação da atriz. Nesta primeira parte do monólogo, todos os elementos remetem a infância, como um quadro negro, a Amarelinha, o vestidinho branco, e claro, os modos da personagem-narradora …

De repente o apagar das luzes se estende um pouco mais. Aí começa, a segunda parte da montagem. É a vez de um assassino, que acaba de sair da cadeia, confessar o que sentiu ao matar, à sangue frio, seu objeto de adoração: Maria Amélia. Confesso que essa foi a parte que mais gostei do espetáculo. Não só porque a história em si é ótima (afinal é Nelson Rodrigues, não é? Rs), mas pela forma instigante de contá-la. Abusou-se do jogo de luz, houve repetições intencionais e silêncios excessivos. Tudo para deixar a plateia atenta (quase desesperada) por saber o que seria relatado a seguir pelo criminoso.

blahculturaladoraçãoAlém disso, é na mudança de uma história para a outra, que os monólogos atingem seu ápice. É bem neste momento que o/a artista joga na cara do público a verdadeira essência de seu ofício – é quando ele/ela “incorpora” e “desincorpora” personagens ao seu belprazer – numa relação muito similar a médium -entidade…

É assim, com o sentido primeiro da palavra Adoração (descrito logo no início desta crítica) presente na morbidez do conto “A Paixão Religiosa de Maria Amélia” que a peça chega ao fim. Quando acende a luz, as palmas – com as pessoas de pé – começam com muita intensidade, mas nos olhos dos espectadores estão não só a admiração por aquela experiência incrível, mas também um gostinho de quero mais…

Vale ressaltar que Sandra Alencar, que atuou brilhantemente neste monólogo, foi indicada ao Prêmio Açorianos de Melhor Atriz (que é a premiação mais importante de Teatro de Porto Alegre) em 2010.

Se você curte Nelson Rodrigues, não pode deixar de assistir “Adoração” quando o monólogo voltar aos palcos cariocas…


FICHA TÉCNICA

Textos: Nelson Rodrigues
Textos recolhidos por Caco Coelho no projeto” O Baú de Nelson Rodrigues”
Direção e Concepção: Beto Russo
Elenco: Sandra Alencar
Preparação Vocal: Ligia Motta
Preparação Corporal: Heloisa Bertoli
Consultoria em Psicologia: Luciane Engel
Figurino: Margarida Rache
Iluminação: Fabrício Simões
Assistência de Produção: Joana do Carmo
Produção e Realização: Grupo dos Cinco

Saiba mais sobre o espetáculo no blog de “Adoração”

Anna Cecilia Fontoura

Jornalista graduada pela Universidade Estácio de Sá e pós-graduada pela Universidade Cândido Mendes. Além de jornalista cultural, é redatora freelancer. Escrever é sua verdadeira paixão! Se considera uma pessoa determinada e criativa, porém um pouquinho sonhadora...
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