Crítica de Teatro | Blackbird

Giselle Costa Rosa

|

15 de novembro de 2014

Temos em Blackbird um espetáculo pulsante. Por tratar de um assunto tão delicado como a pedofilia, sente-se logo no início o peso da história, parcialmente inspirada em um caso verídico ocorrido em 2003 entre um americano de 32 anos e uma britânica de 12,  na produção brasileira nomeados como Ray e Una respectivamente.

O texto premiado do escocês David Harrower nos confina junto ao casal em um único cenário – um refeitório da empresa em que Ray trabalha. O espaço onde é encenada a peça traz a sensação de estarmos ali junto deles, como fôssemos mais um em cena, mas sem que nos percebessem. E isso potencializa o espetáculo.

Una, agora uma jovem de 27 anos, ao visitar Ray, com 56, em seu local de trabalho, busca fechar suas feridas e abrir as dele (aparentemente sanadas). Julgado e condenado, após cumprir sua pena, ele muda de nome e tenta recomeçar sua vida em outra cidade. Una descobre seu paradeiro e sai em busca de explicações e, sobretudo, de entender as emoções conflitantes que nunca deixaram de estar em ebulição dentro dela.

O encontro de Ray e Una é marcado, inicialmente, por um esquivar constante dele. Sua tentativa de se evadir do passado vai deixando Una cada vez mais impaciente por respostas. Ray tenta se manter impassível aos fatos. Já é tarde demais e ele acaba revivendo o interrogatório. Nenhuma resposta será ao todo satisfatória e acaba gerando outros questionamentos. As marcas nunca serão apagadas. A inquietação da existência ao conviver com os fatos ocorridos talvez nunca seja apaziguada.

Blackbird_Thaissa-Traballi

Foto: Thaissa Traballi

Blackbird fala mais do que sobre um episódio de pedofilia. Fala da paixão que acomete nós humanos de maneira tão absurda que em muitos evidenciam desvios de condutas, enquanto em outros pode causar exposição demasiada, fixação pelo objeto desejado, podendo desencadear uma ilusão de que nada é mais importante do que o Ser cobiçado em questão. Nesse ápice, sentir-se abandonado pode ser fatal e acarretar no estilhaçar da autoestima.

Una esmiúça os acontecimentos do passado para entender o porquê de ter sido deixada para trás. Revive emoções contraditórias e arranca de Ray informações ora satisfatórias, ora expiatórias. Não há como ter certeza daquilo que se é exposto, buscando uma peça final ao quebra-cabeça de um relacionamento interrompido.

Com a bela direção de Bruce Gomlevsky, os atores Yashar Zambuzzi e Viviani Rayes oferecem-nos uma atuação de excelente qualidade, numa entrega vigorosa de ambos ao texto. O embate entre eles nos tira da zona de conforto e coloca-nos diante da complexidade dos sentimentos humanos. Ali, frente a frente, quase parte da cena, somos a quarta parede que tudo ouve e nada diz. Vale ressaltar também a participação especial da atriz Bella Piero ao final que estremece e cria um ponto de tensão perfeito para o final.

Se no amor vale tudo, como lidar com os limites éticos e morais impostos pela nossa sociedade, pelas regras da etiqueta e pelo zelo da moral e dos bons costumes? O texto de Harrower expande a discussão para além do crime cometido. Ray foi penalizado judicialmente. E Una mesmo sendo vítima também acabou pagando um alto preço pelo acontecido. Acaba que ambos se veem de mãos atadas perante suas vidas. Nessa travessia naufragar é fácil. Esconder-se em uma ilha isolada, permanecendo por lá até o fim, é uma opção. Mas da vida é impossível sair ileso.

:: FICHA TÉCNICA

Texto: David Harrower
Tradução: Alexandre J. Negreiros
Direção: Bruce Gomlevsky
Elenco: Viviani Rayes, Yashar Zambuzzi e Bella Piero
Direção de Produção: Viviani Rayes
Produção Executiva: Yashar Zambuzzi
Cenário: Pati Faedo
Figurinos: Ticiana Passos
Iluminação: Elisa Tandeta
Trilha Original: Marcelo Alonso Neves
Assistência de Direção: Francisco Hashiguchi
Assistente de Produção: Glau Massoni
Assessoria de Imprensa: Alessandra Costa
Programação Visual e Fotografias: Thiago Ristow
Fotos de Cena: Thaissa Traballi
Idealização: Te-Un TEATRO
Produção e Realização: Rayes Produções Artísticas

Giselle Costa Rosa

Integrante da comunidade queer e adepta da prática da tolerância e respeito a todos. Adoro ler livros e textos sobre psicologia. Aventuro-me, vez em quando, a codar. Mas meu trampo é ser analista de mídias. Filmes e séries fazem parte do meu cotidiano que fica mais bacana quando toco violão.
O que sabemos sobre Wicked Boa noite Punpun Ao Seu Lado Minha Culpa Lift: Roubo nas Alturas Patos Onde Assistir o filme Lamborghini Morgan Freeman