CRÍTICA | ‘Kingsman: O Círculo Dourado’ critica conservadorismo que volta a imperar nos EUA

Thiago de Mello

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28 de setembro de 2017

O contexto político dos EUA – em outras palavras, o mandato do infame presidente Donald Trump – tem sido uma fonte de inspiração de Hollywood atualmente, direta ou indiretamente. Filmes como “O Planeta dos Macacos: A Guerra” ou “Mãe!” permitem leituras a respeito do governo norte-americano. Mas se em ambas obras tal leitura é mais sutil, em Kingsman: O Círculo Dourado, a crítica ao presidente é bastante direta.

O roteiro de Matthew Vaughn e Jane Goldman utiliza a figura o presidente interpretado por Bruce Greenwood (com nome e feições diferentes, mas claramente uma sátira) com dois propósitos: como comentário político e para dar novo pretexto à continuação, criando assim um ambiente fértil para iniciar a nova jornada no universo dos KingsmanO Círculo Dourado desenvolve uma linha de originalidade própria, sem depender unicamente da conexão e repetição dos acertos do primeiro filme (Kingsman: Serviço Secreto, de 2014).

Isso não significa que não haja constantes referências e citações à obra antecessora. Pelo contrário, a relação é tão constante quanto é abundante. Porém, a intertextualidade entre os filmes é trabalhada com naturalidade através de elementos narrativos como alusões, paráfrases e paródias. Vaughn e Goldman se preocuparam em dar sentido às conexões, criando pretextos orgânicos dentro da diegése, favorecendo a fluidez narrativa sem soar como mera repetição grandiloquente.

Dessa vez, a trama coloca os Kingsman Eggsy (Taron Egerton) e Merlin (Mark Strong) nos Estados Unidos após Poppy (Julianne Moore, cativante e divertidíssima), a maior narcotraficante do mundo, destruir a base a agência. Para descobrir quem os atacou, Eggsy Merlin recorrem aos Statesman, a versão norteamericana da agência secreta britânica, liderada por Champ (Jeff Bridges). Ao lado de Whiskey (Pedro Pascal), os agentes tentarão impedir o plano de Poppy, que infectou milhões de usuários de drogas a fim de obrigar o presidente dos EUA a legalizar todas suas substanciais ilícitas.

Na trama encontram-se os dois alicerces que a sustentam. O primeiro é o supracitado presidente Trump. O segundo é a fracassada luta contras as drogas. Enquanto o primeiro funciona mais como uma paródia, uma ridicularização da postura egocêntrica, arrogante e teimosa de Trump (o que não deixa de ser uma crítica), a segunda é um comentário direto sobre o antigo debate quanto à descriminalização, regulação e legalização de substâncias ilícitas. Ambos os temas encaixassem bem no contexto de Kingsman, fornecendo vigor à continuação.

Os comentários contra a guerra às drogas encontram fluidez, mesmo que não possuam grande profundidade. Isso, porém, pode ser encarado como mais uma crítica à mentalidade infantil de Trump que, quando questionado sobre algum fato ou debate moral sobre as contradições da criminalização, foge às respostas com ofensas ou algo sem sentido.

Há, também, comentários acerca da polêmica Fox News, que reporta a infecção global e a negociação entre Poppy e Trump. De tão exagerada e caricata, a trama parece ser exatamente algo que a emissora realmente comentaria (e algo que Trump aceitaria e utilizaria para autopromoção já que é pela Fox News – e pelo Twitter – que ele se pauta).

Tudo isso se apoia sobre uma sólida base: o conservadorismo norte-americano. E é aí que a direção de Matthew Vaughn volta a brilhar. Todo esse contexto parte do ideal inato dos Estados Unidos sobre a moralidade quanto o sexo, drogas e violência. É sobre essa perspectiva que Vaughn dá à Kingsman: O Círculo Dourado um elemento para substituir o “elemento da surpresa” que colaborou fundamentalmente com o sucesso do primeiro filme: o risco.

Quanto à violência, Vaughn já demonstrou hábil olhar e manuseio de câmera para retratá-la com criatividade. A estilização das lutas continua bem feita, resultando em mais sequências empolgantes e divertidas. O mesmo vale para todo o discurso contra a guerra às drogas, que encontra personagens, justificativas e debates curiosos que representam o imaginário coletivo do conservadorismo americano. Um reflexo bem trabalhado. Porém, é no sexo, tema tão polêmico no país, que Vaughn brinca com a mentalidade do Tio Sam.

Kingsman é, dentre várias coisas, uma sátira de James Bond. E não é possível negar o famigerado ímpeto sexual do 007. Dessa forma, a insinuação sexual que foi destacada no fim do primeiro filme, ganha uma presença maior e mais arriscada em O Círculo Dourado. As piadas referentes a sexo são frequentes e com baixo pudor. Porém, o destaque fica numa cena específica onde Eggsy precisa colocar um rastreador numa mulher. A cena abre duas discussões básicas. A primeira é quanto ao pretexto pouco elaborado. Porém, interpreto de que essa cena é mais uma paródia quantos motivações sexuais de Bond, que, em Kingsman, encontra justificativa que vai além da excitação.

O mais curioso, porém, é a forma como foi filmada. Vaughn possui habilidade em mascarar o explícito e realiza uma sequência interessante e que pode até causar certo estranhamento, mas sem jamais vulgar. Certamente um momento arriscado, o que é um grande ponto positivo, principalmente ao mexer com os brios de um conservadorismo que permanece com força e influência.

Mesmo com criatividade para dar substância à trama, ainda há problemas espalhados ao longo do filme. O principal é a presença de Harry Hart/Galahad (Colin Firth). Dentro da narrativa, parte do arco do personagem – ligado também ao arco de Eggsy – é dotado de um sentimentalismo incômodo. Ao tentar estabelecer os sentimentos de Eggsy para com o mentor, Vaughn erra na mão e cria momentos redundantes, expositivos e cafonas. Além disso, a montagem desse arco por vezes quebra o ritmo narrativo. Porém, o pior erro é, graças à necessidade de retornar com o personagem, mexer no primeiro filme. Sua volta elimina boa parte da carga dramática e de imprevisibilidade que deu força à Kingsman: Serviço Secreto.

Há, também, o romance de Eggsy e a princesa Tilde (Hanna AlströmI) que fica deslocado. A importância do envolvimento entre ambos é exagerada e pouco interessante. O mesmo acontece com a participação e piada sobre o cantor Elton John, que interpreta a ele mesmo, numa recorrência que perde a graça pela constância. Tudo isso soma desnecessários minutos a mais no filme, deixando-o longo e, até, cansativo.

Mas se há problemas narrativos em Kingsman: O Círculo Dourado, a qualidade técnica e valor de produção são elogiáveis, principalmente nos cenários e ambientações. A cela que abriga Harry, por exemplo, é um desenho de sua mentalidade no momento. Lacunas brancas, vazias, preenchida apenas por informações sobre borboletas. São construções que refletem o cuidado ao desenvolver cenários que refletem as personalidades dos personagens. O mesmo acontece com a fortaleza e esconderijo de Poppy. Idealizado a partir da estética dos anos 1950, o local é uma extensão da vilã e fascina pelas referências espalhadas ao longo do cenário, como o design dos robôs, o clima retrô e o cinema com letreiro de época. Inclusive há uma curiosa referência ou piada com o filme “Capitão Fantástico” (de Matt Ross, 2016) anunciado nesse letreiro. Talvez seja uma ironia a respeito dos ideais do personagem de Viggo Mortensen em conflito com o que prega Poppy. Talvez seja apenas uma piada. De qualquer maneira, é algo divertido de ver e refletir.

Vaughn Goldman deram mais profundidade do que poderia se imaginar em Kingsman: O Circulo Dourado. Há artifícios sustentáveis para justificar a existência do filme (além do óbvio lucro), ancorados em reflexos atuais e socioculturais. Além disso, a direção de Vaughn mantém suas assinaturas como a violência estilizada, transições criativas e fluidas, música diegética e grande senso de humor. Porém, falha no ritmo narrativo, dando importâncias e tempo a mais para subtramas pouco envolventes. Há, também, algumas inconsistências na verossimilhança do universo (a segurança na casa de Eggsy, por exemplo, que permite que qualquer um encontre seu arsenal). Mas o resultado final de Kingsman: O Círculo Dourado é positivo! Pode não ser tão bom quanto o primeiro, que tinha a novidade a seu favor. Mas o risco ao satirizar o conservadorismo que volta a imperar veementemente nos Estados Unidos deixa o filme um pouco mais próximo da qualidade do seu antecessor.

Kingsman: O Círculo Dourado estreia em 28 de setembro.

*Texto publicado originalmente no site “O SETE”, parceiro do BLAH CULTURAL

::: TRAILER

::: FOTOS

::: FICHA TÉCNICA

Título original: Kingsman: The Golden Circle
Direção: Matthew Vaughn
Elenco: Taron Egerton, Colin Firth, Julianne Moore
Distribuição: Fox
Data de estreia: qui, 28/09/17
País: Estados Unidos
Gênero: ação
Ano de produção: 2015
Duração: 135 minutos
Classificação: 16 anos

Thiago de Mello

Jornalista amante de cinema, de rock, de cultura pop e de Bloody Mary. Além de colaborar para o Blah Cultural, é idealizador do osete.com.br.
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