CRÍTICA | Preparem seus corações para ‘Mãe!’

Bruno Giacobbo

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20 de setembro de 2017

Um dos maiores desafios de um crítico é escrever rapidamente sobre um longa-metragem que ele acabou de assistir. A cobertura de festivais exige esta urgência porque quase não há tempo para refletir. Com a prática você acaba tirando de letra. No entanto, o problema maior ocorre quando é preciso falar sobre uma obra de grande impacto emocional ou de teor controverso. Filmes de cunho religioso costumam proporcionar este desconforto aos críticos. Eu imagino como deve ter sido duro analisar “A Paixão de Cristo” (2004), de Mel Gibson, que, entre outras coisas, recebeu inúmeras acusações de antissemitismo; ou ainda discorrer sobre “A Última Tentação de Cristo” (1998), do mestre e católico Martin Scorsese. Só que ambos possuíam um fator facilitador: as pessoas sabiam sobre o que eles tratavam e, mal ou bem, podiam se preparar para o que iriam ver. Agora, imaginem a sensação de entrar na sessão de um filme às cegas ou totalmente engando pelo marketing prévio, que te vendeu um produto e te entregou outro? O desconforto é maior. Pois bem, é esta sensação que Mãe! (Mother!), de Darren Aronofsky, provocará em muita gente boa por aí.

O longa conta a história de um casal, Ele (Javier Bardem), um poeta que atravessa uma crise criativa, Ela (Jennifer Lawrence), uma mulher sem uma profissão definida, mas que é a responsável pela reforma da casa que habitam. Os dois não possuem nomes. São apenas marido e esposa. Nada mais é dito, assim como em momento algum somos informados onde fica a propriedade. Olhando para fora, através das janelas, tudo o que vemos são árvores para todos os lados possíveis, circundando a residência. Um dia, eles recebem a visita de um Homem (Ed Harris) que se apresenta como um médico. Ele confundiu o lugar com uma estalagem. O cara necessita de uma cama e um pouco de comida. E fica, convidado pelo dono do lar, em que pese a perplexidade da dona. E não para por aí. A próxima a chegar, igualmente de surpresa, é a Mulher do doutor (Michele Pfeiffer). Rapidamente, ela se aboleta e se sente no direito de dar pitacos na vida do casal, constrangendo a todos. Desta forma, a rotina da casa vira do avesso e esta mudança não só provoca uma enorme angustia na personagem de Lawrence como, aos poucos, se alastra do filme para os espectadores na plateia.

Com muitos rostos comerciais (Lawrence, Bardem, Harris e Pfeiffer) e propagandeado como um filme de terror, a obra de Aronofsky tem grandes chances de levar um bom público às salas de cinema, em seu final de semana de estreia, aqui no Brasil. O problema será depois, quando o falatório começar. Vamos colocar assim: a classificação por gênero dele não poderia ser mais equivocada. O filme tem, sim, bastante cenas fortes e aterrorizantes, acontece que ele está mais para um drama com toques de horror do que para qualquer outra coisa. Não provoca sustos em profusão, não versa sobre entidades sobrenaturais ou assassinos em série, sem querer aprisionar o gênero a uma camisa de força formada por estas características. Também não é um destes novos longas que procuram assustar utilizando elementos cotidianos. E é aí que reside o X da questão: se as pessoas não lerem nas entrelinhas o verdadeiro significado desta história, existe o risco delas a encararem como algo feito, unicamente, para chocar. E não sei se o choque pelo choque justifica uma realização artística.

E sobre o que ele versa, então? Mãe! é uma sinistra fábula bíblica. A Bíblia não é somente o livro mais lido na história da humanidade, ela é o maior compêndio de aventuras já escrito pelo homem, pois, acredite-se ou não na veracidade dos fatos ali narrados (e eu acredito em boa parte), é isto o que ela é. E, em apenas duas horas, o cineasta vai do Gênesis ao Apocalipse com uma simplicidade estarrecedora. Entretanto, não confundam esta simplicidade com fatos bem concatenados ou uma ordem cronológica precisa. Está tudo lá, só que jogado, pincelado e mostrado para quem quiser ver e brincar de fazer associações. O fato dos personagens não terem nomes próprios foi uma sacada inteligente. Com tantos personagens bíblicos, era simplesmente impossível retratar todos, ou mesmo os mais importantes, em tão exíguo tempo. Logo, cada um dos tipos representados pelo elenco pode adquirir uma identidade diferente, dependendo da cena, ainda que todos tenham uma identidade predominante ao longo do desenvolvimento da trama.

      

Darren Aronofsky é um daqueles diretores que não se importam com o que outros pensam. Ele é corajoso e provocador. Em 2010, chocou uma parte considerável do público e da crítica especializada com “Cisne Negro”. No entanto, o longa foi indicado ao Oscar de melhor filme e deu a estatueta para Natalie Portman. Era uma obra pesada e foi somente a quinta película de horror indicada ao principal prêmio da Academia. Todavia, este novo trabalho é muito mais pesado e horripilante. Utilizando um único cenário e CGI na dose certa, ele criou um ambiente claustrofóbico, sufocante e angustiante. Inicialmente, a casa de Bardem e Lawrence é um idílio de paz absoluta. Quase o paraíso. Contudo, à medida que trama vai se desdobrando e fatos inusitados vão acontecendo, o local se transforma em uma babel onde os protagonistas deixam de falar a mesma língua. O horror, que pode levar alguns a confundi-lo com o terror, está em cenas de embrulhar o estômago onde não há economia em elementos bastante indigestos. Confesso: cheguei a ficar com a boca seca e a sentir palpitações.

Em entrevistas, o cineasta revelou que Mãe! só aconteceu a partir do momento que Jennifer Lawrence entrou no projeto. Ela é a alma do filme e não apenas por batizá-lo. A maior estrela de Hollywood, na atualidade, desempenha um papel (o melhor de sua carreira) onde a doçura e a tristeza presentes em seu olhar alternam com momentos de uma raiva encubada, prestes a explodir. É atuação para, no mínimo, uma nova indicação ao Oscar. Muito bem também estão Javier Bardem e Michele Pfeiffer. Ele interpretando um homem vaidoso, que mesmo passando por uma crise em seus afazeres profissionais, tem total consciência de que, dentro daquela casa, é o todo poderoso. Dotada de uma personalidade reptiliana, ela é envolvente como uma serpente ou sedutora como uma mulher quando sabe o que quer. É o pecado em carne e osso, rubro como uma maçã. Juntos, e com o plus da simbólica participação dos irmãos Domhnall e Brian Gleeson, eles são o sopro de vida que faz esta fábula sinistra crescer e se multiplicar em nossos pensamentos, a centelha divina da criação de Aronofsky.

Desliguem os celulares e preparem seus corações.

::: TRAILER

::: FOTOS

::: FICHA TÉCNICA

Título original: Mother!
Direção: Darren Aronofsky
Elenco: Jennifer Lawrence, Javier Bardem, Michelle Pfeiffer
Distribuição: Paramount Pictures
Data de estreia: qui, 21/09/17
País: Estados Unidos
Gênero: drama
Ano de produção: 2017
Duração: 115 minutos

Bruno Giacobbo

Um dos últimos românticos, vivo à procura de um lugar chamado Notting Hill, mas começo a desconfiar que ele só existe mesmo nos filmes e na imaginação dos grandes roteiristas. Acredito que o cinema brasileiro é o melhor do mundo e defendo que a Boca do Lixo foi a nossa Nova Hollywood. Apesar das agruras da vida, sou feliz como um italiano quando sabe que terá amor e vinho.
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