CRÍTICA | Vocês nunca mais visitarão a cozinha de um restaurante após ‘O Animal Cordial’

Bruno Giacobbo

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7 de agosto de 2018

Do que é capaz um homem ou uma mulher quando pressionados e levados a uma situação extrema? Vocês já pararam para pensar o que fariam se fossem colocados contra a parede e forçados a agir para sobreviver? Eu nunca pensei nisto de fato, mas Inácio (Murilo Benício), proprietário de um pequeno restaurante, provavelmente, sim. Um dia, perto do fim da noite, seu estabelecimento é invadido por dois assaltantes. Sem medir as consequências, ele pega uma arma no balcão e reage, colocando em risco a vida da garçonete Sara (Luciana Paes), do chef de cozinha Djair (Irandhir Santos) e de clientes como o solitário Amadeu (Ernani Moraes), o advogado Bruno (Jiddu Pinheiro) e a dondoca Verônica (Camila Morgado). Só que tudo dá certo, um dos bandidos é gravemente ferido e o outro rendido. Naturalmente, o próximo passo seria chamar a polícia, certo? Errado, pelo menos para o até então cordial Inácio.

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Roteirista experiente e diretora de alguns curtas-metragens, Gabriela Amaral Almeida faz sua estreia em longas com este excepcional Animal Cordial, uma obra capaz de despertar reações apaixonadas de defesa e de execração. Tais manifestações são completamente compreensíveis e vêm da nossa capacidade de se solidarizar ou se indignar com o que acontece a nossa volta. Mesmo com a barbárie que nos cerca, que domina a pauta dos jornais televisivos com notícias sobre pais que saem para trabalhar de manhã e não voltam para casa, existem pessoas capazes de manter a cabeça no lugar e exigir que a justiça seja feita dentro dos estritos ditames da lei. No entanto, como condenar aqueles que, no auge da dor, apregoam que bandido bom é bandido morto? É a tal situação extrema que citei. Não sabemos qual será a nossa reação até passarmos por algo assim. Esta é a discussão proposta pela cineasta.

Como a história toda se passa dentro de um restaurante, alguns ingredientes foram adicionados com o intuito de dar um tempero extra. Para começo de conversa, com o desdobrar da trama, vamos conhecendo um a um os personagens e as suas particularidades. Inácio, por exemplo, já passou por uma experiência de assalto. Logo, é de se perguntar se seus atos são reativos ou friamente calculados. Sua relação com Djair e os demais empregados que aparecem no filme não é das melhores. Ele aparenta ser um chefe rígido e o ambiente é carregado de tensão. Entretanto, Sara parece ser fiel a ele. Os demais tipos são singulares e formam uma fauna excêntrica. Durante sua refeição, Amadeu é introspectivo, bebe mais do que come e quando a garçonete o suja sem querer permanece impassível. Por sua vez, Bruno e Verônica são esnobes e desrespeitosos. E se não bastasse tudo isto, o próprio lugar exala uma elegância de fachada, pois fica em uma área perigosa de São Paulo.

É nesta panela de pressão que algumas referências, bem pontuais, podem ser pinçadas. A cena do assalto, por exemplo, evoca “Marcas da Violência” (2005), obra-prima de David Cronenberg. Inácio (Murilo Benício) e Tom Stall (Viggo Mortensen) são personagens parecidos na medida que, inicialmente, vendem uma imagem para o público e depois, com o passar do tempo, se transformam e revelam suas verdadeiras facetas. Na barbárie que se transformará a história de Gabriela, é possível também fazer links claros com a filmografia de Quentin Tarantino. Há o mesmo jorrar de sangue propositalmente farsesco e diálogos que soam deslocados, mas que estão ali para conferir a tudo um ar absurdo. Em determinado momento, temos uma discussão sobre que tipo de piso é melhor para um restaurante: Madeira ou porcelanato? O segundo, responde alguém, pois é mais fácil de limpar.

Com uma câmera intimista e invasiva, a cineasta arranca interpretações incríveis de todo o seu elenco. Contudo, quase todo o destaque vai para Luciana Paes e Murilo Benício, em um autêntico tour de force animalesco. É a dupla que domina a cena o tempo todo e que possui os personagens mais interessantes, justamente por causa das transformações pelas quais passam. O nome do filme remete ao que somos ou procuramos ser em sociedade, diariamente. Em compensação, é de uma ironia nada sutil quando confrontado com as bestas-feras que ambos se transmutam. Não existe nada de cordial em suas atitudes, na hora de fazer sexo de maneira brutal ou de comer um pedaço de carne, rastejando pelo chão imundo de uma cozinha. Irandhir Santos está magnifico como sempre, porém, o show não é dele.

O Animal Cordial é uma belíssima carta de apresentação de Gabriela Amaral Almeida, cineasta ligada ao fantástico grupo de realizadores paulistanos (Marco Dutra, Juliana Rojas, Caetano Gotardo e companhia) que faz, hoje, o cinema mais original e pulsante do Brasil. Logo, ela tem pedigree e este se revela em escolhas acertadas que, claro, não são só mérito dela. A fotografia que realça os tons de verde musgo, cinza e de um vermelho sangue bastante vivo, escolhidos pela direção de arte, possuem interferência direta de Barbara Alvarez e Denis Netto, respectivamente. Ou seja, tudo fruto de um esplêndido trabalho coletivo, tal qual ocorre em outros filmes desta turma de Sampa. O mérito maior dela está em ter orquestrado este mise-en-scène sem medo de ousar ou de ser criticada; e por nos presentear com um desfecho impactante. Vocês nunca mais visitarão a cozinha de um restaurante.

Desliguem os celulares e excepcional diversão.

*Filme visto no 19º Festival Internacional de Cinema do Rio de Janeiro

::: TRAILER

::: FOTOS

::: FICHA TÉCNICA

Direção: Gabriela Amaral Almeida
Roteiro: Gabriela Amaral Almeida, Luana Demange
Elenco: Murilo Benício, Luciana Paes, Ernani Moraes, Jiddu Pinheiro, Camila Morgado, Irandhir Santos, Humberto Carrão, Ariclenes Barroso, Thais Aguiar, Eduardo Gomes, Diego Avelino
Produtor: Rodrigo Teixeira
Co-produtor: Canal Brasil
Produção Executiva: Ana Kormanski, Daniel Pech e Raphael Mesquita
Direção de Fotografia: Barbara Alvarez
Direção de Arte: Denis Netto
Figurino: Diogo Costa
Maquiagem: André Anastácio
Som Direto: Gabriela Cunha
Diretora de Produção: Thais Morresi
Montador: Idê Lacreta
Desenho de som: Daniel Turini e Fernando Henna
Trilha Sonora: Rafael Cavalcanti
Supervisor de pós-produção: Henrique Viana
Idioma: Português
Gênero: Thriller/ Slasher/ Gore
Ano: 2017
País: Brasil
Classificação: a definir

Bruno Giacobbo

Um dos últimos românticos, vivo à procura de um lugar chamado Notting Hill, mas começo a desconfiar que ele só existe mesmo nos filmes e na imaginação dos grandes roteiristas. Acredito que o cinema brasileiro é o melhor do mundo e defendo que a Boca do Lixo foi a nossa Nova Hollywood. Apesar das agruras da vida, sou feliz como um italiano quando sabe que terá amor e vinho.
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