CRÍTICA | ‘O Nascimento de Uma Nação’ é uma obra importante sobre racismo

Bruno Giacobbo

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11 de novembro de 2016

No início deste ano, ao ser aplaudido no Festival de Sundance, antes mesmo de ser exibido pela primeira vez, O Nascimento de Uma Nação (The Birth of a Nation) foi precocemente colocado entre os filmes que poderiam brilhar no próximo Oscar. A euforia era justificável. Obras sobre o passado escravocrata dos americanos costumam fazer bastante sucesso. Em 2014, por exemplo, “12 Anos de Escravidão” deixou o Teatro Dolby, em Los Angeles, com três estatuetas douradas. No entanto, nos últimos dez meses, muita coisa aconteceu e este longa-metragem acabou ofuscado por um escândalo sexual envolvendo seu diretor, roteirista e ator principal, Nate Parker. Na época que ainda estudava na Universidade da Pensilvânia, ele foi acusado de ter estuprado uma colega. Ainda que, depois, tenha sido absolvido, a mácula permaneceu e esta história foi ressuscitada pela imprensa em pleno boom da campanha de divulgação. Os resultados visíveis desta polêmica foram uma bilheteria baixíssima no  final de semana de estreia (apenas 7 milhões de dólares) e o sumiço do seu nome de quase todas as listas de apostas envolvendo a temporada de prêmios que culmina na grande festa da Academia. Contudo, como a função de um crítico cinematográfico não é julgar o homem por trás do filme, mas o filme em si, devo dizer que o trabalho de Parker é brilhante.

Baseado em acontecimentos reais, a trama é toda focada em Nat Turner (Nate Parker), um escravo do estado da Virginia que, aos 31 anos, liderou uma rebelião de negros contra os donos das plantações de algodão, no início do século XIX. A revolta durou, aproximadamente, 48 horas e terminou com centenas de mortos. Como o longa mostra o protagonista desde pequeno, o mais interessante não é a insurreição propriamente dita e, sim, os fatos que o levaram a lidera-lá. Ele cresceu junto à casa-grande, bem tratado e brincando com seu futuro senhor, Samuel (Armie Hammer). Curioso, inteligente, foi educado pela mãe deste, Elizabeth (Penelope Ann Miller), que usando a Bíblia o ensinou a ler. Já adulto, pregava a palavra de Deus e era um modelo para os demais cativos. A crise na economia local levou Samuel a oferecer os serviços de Nat aos seus vizinhos. Eles iam de propriedade em propriedade pregando com o intuito de domesticar os espíritos. E foi a partir desta ‘cruzada religiosa’, vendo que os escravos de outras fazendas eram tratados de forma cruel, que o homem pacífico e cordato começou a se transformar, aos poucos, em um líder beligerante e sanguinário. A transformação completa só aconteceu quando ele sentiu na própria pele a crueldade alheia.

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O principal mérito do roteiro é mostrar como a transformação do protagonista ocorreu de forma crível e nada abrupta. Na HQ “A Piada Mortal”, o Coringa fala que só é preciso um dia ruim para reduzir o mais são dos homens a um lunático. Aqui, um dia talvez não fosse o suficiente para convencer o público, logo, o diretor-roteirista utilizou quatro, com acontecimentos bastante traumáticos, para justificar tal mudança de personalidade. Além disto, há também o papel desempenhado pela religião. Quem conhece a Bíblia sabe que o Deus do Velho Testamento é vingativo e colérico; enquanto o Deus do Novo Testamento perdoa e é amoroso. A vinda de Jesus Cristo é o divisor de águas em relação a maneira como enxergarmos o Criador. Consequentemente, se você deseja pregar a submissão, basta escolher determinadas passagens do Novo Testamento. Agora, se a intenção é pregar a insubordinação, escolha os trechos certos do Velho Testamento. Esta é uma receita simples, eficaz e usada até hoje por muitos pregadores. No decorrer do filme, fica claro que Nat foi educado lendo somente a segunda parte do livro sagrado dos cristãos. Igualmente clara é a percepção de que os traumas sofridos somados a leitura posterior da primeira parte o transformaram; o texto explora isto tudo muitíssimo bem.

O Nascimento de Uma Nação é uma obra importante por alguns motivos. Extremamente chocante, as cenas de tortura são as mais impactantes já mostradas em um filme do gênero. Ele foi taxado, entre outras coisas, de maniqueísta. Tal maniqueísmo, na verdade, deve ser visto como realismo. Não há personagens bons ou maus aqui. Somente homens e mulheres que agem dentro das convenções sociais daquela época. Brancos mandam, negros obedecem. Qualquer gesto de cortesia  entre pessoas de etnias diferentes é frágil e pode ruir ao menor sinal de que uma destas convenções foi desrespeitada. Outro motivo é o fato de ser o primeiro trabalho como realizador de Nate Parker. Além de ter feito um produto redondo (no bom sentido), onde se destaca a bela fotografia, ele, ousadamente, o batizou com o mesmo nome do clássico de D.W. Griffith, em que atores brancos foram maquiados para se passaram por negros e a criação da Ku Klux Kan é saudada com certo entusiasmo. O contraponto entres estas duas películas, separadas por ‘ínfimos’ 101 anos de diferença (1915-2016), é interessante e pertinente, uma vez que o racismo ainda sobrevive em nossos tempos.

Desliguem os celulares e excelente diversão.

TRAILER:

https://youtu.be/wxkXhFDKdmo

FICHA TÉCNICA:

Título original: The Birth of a Nation
Direção: Nate Parker
Roteiro: Nate Parker
Elenco: Armie Hammer, Mark Boone Junior, Penelope Ann Miller
Distribuição: Fox
Data de estreia: qui, 10/11/16
País: Estados Unidos
Gênero: drama
Ano de produção: 2016
Duração: 110 minutos
Classificação: a definir

Bruno Giacobbo

Um dos últimos românticos, vivo à procura de um lugar chamado Notting Hill, mas começo a desconfiar que ele só existe mesmo nos filmes e na imaginação dos grandes roteiristas. Acredito que o cinema brasileiro é o melhor do mundo e defendo que a Boca do Lixo foi a nossa Nova Hollywood. Apesar das agruras da vida, sou feliz como um italiano quando sabe que terá amor e vinho.
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