CRÍTICA | ‘Os Papéis de Aspern’

Julio Mantovani

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17 de maio de 2019

Inspirado na obra de Henry James (1888), Os Papéis de Aspern (The Aspern Papers) acompanha Morton (Jonathan Rhys Meyers) em sua tentativa de desvendar o misterioso passado do poeta romântico Jeffrey Aspern (Jon Kortajarena), através de cartas deixadas por ele.

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O principal obstáculo em seu caminho é Julianna Bordereau (Vanessa Redgrave), uma senhora altiva que teve um romance com Aspern e vive isolada com sua sobrinha, srta. Tina (Joely Richardson), em uma mansão decadente. Morton já havia contactado as duas mulheres anteriormente, estando ciente da resistência imposta pela anciã, que pretende levar os segredos de Jeffrey para o túmulo. Por isso, ele arma um plano para conseguir os papéis que tanto quer: sob o nome falso de Edward Sullivan, o protagonista aluga alguns quartos na velha residência, numa tentativa de seduzir a herdeira de Julianna.

O diretor Julien Landais apresenta um trabalho corajoso desde o primeiro minuto, não apenas por abordar a bissexualidade dos personagens como um tema de destaque na narrativa, como também pelas suas escolhas arrojadas, que quebram as estruturas mais usuais do gênero em favor de um filme dinâmico, intenso e subjetivo. Parcialmente inspirado no romantismo, ele inicia a história com uma cena introdutória marcante. Vemos Julianna, ainda em sua juventude, de luto por Jeffrey Aspern, que foi encontrado morto em uma praia deserta. Enquanto ela se agarra aos papéis que Morton tanto deseja, levando-os firmemente entre os peitos, um outro rapaz caminha em direção ao oceano, como se quisesse desaparecer entre as águas escuras.

Através de um breve monólogo, somos convidados a compartilhar da profunda obsessão de Morton pelo escritor romântico, que – mesmo morto – é uma presença marcante ao longo de todo o filme. Em vários momentos, Jeffrey Aspern é retratado como um deus, acima de julgamentos. Sua sensualidade e hedonismo fazem dele um personagem marcante demais para passar despercebido, charmoso demais para ser odiado. Não nos resta outra opção senão ficar fascinados pelos seus mistérios. Isso é crucial para o longa porque coloca o espectador em sincronia com o protagonista. Torcemos para que Morton consiga colocar suas mãos nas cartas, que podem nos aproximar desse autor legendário, conhecendo-o em sua totalidade.

Foto: A2 Filmes / Divulgação

Esse é um movimento esperto, porque Morton está longe de ser uma figura admirável. Seus métodos tornam impossível concebê-lo como um herói. Uma mudança de perspectiva poderia ter feito dele um vilão tão ruim quanto Julianna, ou ainda pior. E aqui está um dos pontos altos de Os Papéis de Aspern: a forma como cada personagem foi construído individualmente, sem se ater a um julgamento moral ou – pelo menos – não julgando todos pela mesma régua, sem ocultar as falhas e vulnerabilidades de nenhum dos lados. Os diálogos enigmáticos deixam claro que todos têm a sua motivação, sem revelar tudo. Morton e Julianna são, na realidade, muito parecidos um com o outro. Apesar da diferença de idade e de gênero, nutrem uma paixão irracional, desprovida de limites, por Jeffrey Aspern. A diferença entre ambos está no fato de que ela teve a oportunidade de concretizar sua paixão, protegendo a memória do seu antigo amante para que ninguém mais possa conhecê-lo da forma como ela o conheceu.

Tanto Morton quanto Julianna são egoístas e não pensam duas vezes antes de colocar a srta. Tina em uma posição que lhe é nociva. Os comentários ácidos e depreciativos de sua tia, por quem ela sacrificou tudo, destroçaram a confiança da personagem em si mesma. Por isso, ela é uma presa fácil para o biógrafo, que tenta seduzi-la. Fica implícito que ela mesma nunca viveu as próprias paixões, permanecendo o tempo todo na sombra de sua tia intempestiva e caprichosa. Por não conhecer os próprios desejos e os segredos do amor, ela vê no hóspede recém-chegado uma oportunidade de se apaixonar. Note que, apesar do aspecto inocente, nem mesmo ela é desprovida das sombras que fazem de todos esses personagens tão humanos. Ao contrário de Morton, ela sabe que o tempo não volta atrás. E, mesmo conhecendo as reais aspirações do editor, se permite envolver de forma deliberada. Suas escolhas têm pouco a ver com amor. Em vez disso, são conduzidas pelo arrependimento, pelo desejo e pelo rancor perante a mulher por quem sacrificou tudo no passado.

Foto: A2 Filmes / Divulgação

Para entender o filme, é necessário compreender que a linha que ele segue não é cronológica. Acompanhamos a trajetória dos pensamentos de Morton, avançando e recuando no passado conforme ele se lembra de eventos anteriores. Em dado momento, seu subconsciente vem à tona e sonhos se misturam com realidade. Essa parte do longa pode ser um pouco confusa, porque alguns dos acontecimentos não passam de reflexões do protagonista que ganham vida dentro de sua mente. Fica aberto para o público decidir se o fantasma de Jeffrey Aspern – que se faz presente mais pela ausência que ele deixa do que pela sua presença propriamente dita – é real ou apenas uma alucinação. Outros elementos semelhantes são inseridos na medida em que a película avança em direção ao seu final, que é, ao mesmo tempo, doce e amargo.

Um aspecto importante que não passa despercebido é que, além de muito bem construído, Os Papéis de Aspern possui um cenário e uma fotografia belíssima. Ao invés de usar um estágio montado e recursos como chroma key, a equipe viajou para rodar as gravações em pallazis legítimos. A voluptuosidade com que as cenas são dirigidas – especialmente as que apelam para a sensualidade – é tão intensa que é impossível reduzir os personagens e seus desejos a um simples conjunto de valores preestabelecidos. Muito bem pensado, bem executado, com atores brilhantes e audácia para reinventar o passado por uma perspectiva moderna, o filme deixa o espectador com um gostinho de quero mais e a vontade de conhecer mais sobre o poeta morto que nos encanta com seus caprichos.

::: TRAILER

::: FICHA TÉCNICA

Título original: The Aspern Papers
Direção: Julien Landais
Elenco: Jonathan Rhys Meyers, Vanessa Redgrave, Joely Richardson
Distribuição: A2 Filmes
Data de estreia: qui, 23/05/19
País: Reino Unido, Alemanha
Gênero: drama
Ano de produção: 2018
Duração: 91 minutos
Classificação: 14 anos

Julio Mantovani

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