CRÍTICA | Esnobar ‘Silêncio’ é um pecado tão grave quanto obrigar alguém a apostatar

Bruno Giacobbo

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8 de março de 2017

No Japão moderno, católicos, budistas e xintoístas convivem pacífica e respeitosamente. Como qualquer sociedade democrática, os japoneses respeitam o direito à livre crença. Contudo, nem sempre foi assim. Lá pela metade do século XVII, durante o início do Xogunato Tokugawa, quando a Igreja Católica ainda era relativamente nova na península nipônica, padres jesuítas e nativos catequizados foram perseguidos, presos e obrigados a apostatar (ato de renegar uma religião). Os que resistiam e se mantinham fiéis a sua fé eram, na maioria das vezes, mortos e usados como exemplo para os demais. O ápice desta perseguição ficou conhecido como “Rebelião de Shimabara” e deixou um rastro de aproximadamente 30 mil mortes. De forma um pouco romanceada, esta história foi retratada em Silêncio (Silence), livro de Shûsako Endô que serviu de base para a película homônima do cineasta Martin Scorsese. Ele levou mais de 20 anos para transpô-lo para as telonas. Foi complicado, mas a espera e todas as dificuldades não foram em vão. O resultado é soberbo.

Sem abordar a rebelião em si, a trama, roteirizada por Martin Scorsese e Jay Cocks, tem como protagonistas os padres Sebastião Rodrigues (Andrew Garfield) e Francisco Garupe (Adam Driver), dois integrantes da Companhia de Jesus. Informados pelo líder da ordem, o jesuíta Alessandro Valignano (Ciarán Hinds), do desaparecimento de seu antigo professor, Cristóvão Ferreira (Liam Neeson), a dupla decide ir atrás dele e, se preciso for, resgatá-lo. Por motivos óbvios, há um sentimento de dever e obrigação no ar. Porém, a única pista que eles possuem é uma carta escrita pelo próprio religioso relatando seus últimos passos e a perseguição sofrida pelos católicos. De Portugal ao Japão, com uma rápida escala na China, esta será uma viagem perigosa. Nas mãos do inquisidor Inoue Massashige (Issei Ogata) suas vidas correrão perigo e a fé será testada. E, em meio a tantas provações, terão que confiar cegamente no guia Kichijiro (Yosuke Kubozuka), um cristão novo que alimenta seríssimas dúvidas em relação a sua conversão.

Mais conhecido do grande público por obras seminais como “Taxi Driver” (1976), “Touro Indomável” (1980) ou “Os Bons Companheiros” (1990), esta não é a primeira incursão do cineasta na seara dos filmes de teor religioso. Em 1988, Scorsese chocou muita gente ao apresentar “A Última Tentação de Cristo”, película baseada no romance de mesmo nome do grego Nikos Kazantzakis. Nele, encontramos um Jesus Cristo e um Judas Iscariotes um tanto quanto diferentes dos quais estamos acostumados. O Messias é humano demais, falho e inseguro. Já o discípulo é retratado como um revolucionário que trai ao tentar fazer o que considera a coisa certa. Por isto, este é um longa-metragem irreverente e dotado de uma verborragia subversiva. Estas características, definitivamente, não cabem em Silêncio, que, de forma reverente e dotado de enormes silêncios, evoca o tempo todo o Filho de Deus sem precisar mostrá-lo em carne e osso.

O padre Sebastião Rodrigues, como todo homem, é falho e sofre com as tentações provenientes do mundo que lhe rodeia. A partir do momento que chega ao Japão, estas só aumentam. É através dele que Jesus  é evocado. O protagonista passa por um verdadeiro processo de “cristianização”. Ao longo de todo o filme, ele prega, cai e levanta. Enfrenta os japoneses como se enfrentasse os romanos: dando a outra face para bater. Neste percurso, algumas imagens deixam clara a analogia entre os dois personagens traçada pelo diretor. A cena do jesuíta chegando a uma cidade,  montado em um animal, remete, instantaneamente, a Cristo entrando em Jerusalém no lombo de um burro. Há, também, uma passagem onde, no reflexo das águas turvas de um rio, os rostos dos dois se fundem em um só. Além disto, Rodrigues tem direito ao seu próprio Judas, vivido por Kichijiro. Aliás, na verdade, como veremos durante o longa, este é uma mistura do Iscariotes com Pedro, o primeiro apóstolo.

Três é o número de narradores usados pelo filme que conta a sua história de forma epistolar (por meio de cartas), linear e progressiva. A epístola inicial é lida pelo desaparecido Cristóvão Ferreira. Esta aparição, logo de cara, dá a falsa impressão que a participação de Liam Neeson, que teve a indicação do seu nome ao Oscar de melhor ator coadjuvante defendida por algumas pessoas, seria maior. E não é. Ele está bem, com alguns diálogos marcantes e fundamentais para o entendimento de Silêncio, porém, nada que possa justificar tal reivindicação. A segunda carta é do padre Sebastião, papel que deu a Andrew Garfield a chance de se destacar como nunca antes (Nem mesmo em “Até o Último Homem”). Com poucas palavras, ele confere veracidade as idiossincrasias de um homem que procura amar os próximos da maneira que Jesus ensinou, mas não consegue evitar sentimentos tão mundanos como a raiva ou o medo. A terceira é a do comerciante holandês Dieter Albrecht (Béla Baptiste) e serve apenas para mostrar, muitos anos depois, o que aconteceu com alguns personagens.

Se Neeson não brilha tanto, o mesmo não pode ser dito de outros três coadjuvantes. Na pele do religioso Francisco Garupe, Adam Driver tem um desempenho quase tão bom quanto o do protagonista. Inicialmente, seu personagem parece forte como o de Garfield. Mas, aos poucos, vai dando sinais que existem diferenças nítidas entre os dois. Se Rodrigues sente medo ou raiva, Garupe, lá pelas tantas, demonstra ter inveja do seu irmão de vocação. Esta demonstração é feita por um único olhar de esguelha. Nada é dito. Se o público não estiver prestando atenção, deixará de perceber tal sutileza. Coisa de ator de alto gabarito. Os outros dois são Yosuke Kubozuka e Issei Ogata. Confesso que desconhecia o trabalho da dupla japonesa. Contudo, após esta película, fiquei com vontade de ver a filmografia previa deles. Kubozuka dá um show sempre que está sob os holofotes. Não há como não odiar Kichijiro. E a dinâmica entre ele e Rodrigues é tão harmônica, que a sensação é de que os intérpretes são velhos companheiros de gravações. Já Ogata se destaca por emprestar um pouco do seu humor natural (ele é um comediante) ao carrasco dos católicos, tornando-o mais leve e palatável.

Um filme como este, baseado em uma história real, muitas vezes, corre o risco de ser acusado de tomar partido de um dos lados. Quando envolve a Igreja Católica, instituição com máculas no seu passado, o problema e a repercussão podem ser ainda maiores. E aí, talvez, nem o fato da Companhia de Jesus, ordem da qual Ferreira, Rodrigues e Garupe faziam parte, ter sido uma das grandes opositoras da escravidão pelo mundo afora faça diferença. E apesar do roteiro seguir os relatos históricos, o longa-metragem de Scorsese não está livre destas acusações, pois os cristãos são retratados tentando “impor” sua religião por meio de palavras e ensinamentos; enquanto os japoneses respondem com firmeza e bastante violência. Torturas e crucificações são as armas das forças do xogum e do inquisidor nesta batalha pela fé. Com certeza, haverá quem advogue que, mais uma vez, houve uma imposição da visão ocidental em relação à oriental. Paciência, que discutam com os livros de História. Por falar em crucificação, as cenas que fazem referência a este castigo brutal são sensacionais, assim como toda a direção de arte, o figurino e a maquiagem de época desta obra.

Quando escrevi, lá em cima, que Silêncio era soberbo, não era exagero. Além dos méritos já enumerados, há outros como a sensacional fotografia do mexicano Rodrigo Pietro, a montagem da oscarizada Thelma Schoonmaker e, óbvio, a direção do velho mestre. As duas décadas de muita luta e perseverança de Martin Scorsese para rodar este longa valeram a pena. Por que ele obteve apenas uma indicação no último Oscar? Esta é uma pergunta que permanecerá sem resposta. A teoria de que teria chocado a parcela mais conservadora da Academia por partir do pressuposto que Deus não existe é facilmente contestável. Nada nele permite esta leitura e se ainda permitisse, em determinado momento, bem no final, ela é refutada por uma bela imagem, tão singela quanto poderosa. Totalmente desprovido de trilha sonora e com um nome bastante significativo, este filme, que também poderia se chamar “A Cristianização de Sebastião”, é verdadeiramente superior a todos os nove indicados de 2017. Assim, esnobá-lo na principal premiação do ano foi um pecado tão grave quanto obrigar alguém a apostatar. Nem o inquisidor faria isto.

Silenciem os celulares e não apostatem desta diversão.

TRAILER:


GALERIA DE FOTOS:

FICHA TÉCNICA:

Título original: Silence
Direção: Martin Scorsese
Roteiro: Jay Cocks e Martin Scorsese, baseado no romance de Shûsaku Endô
Elenco: Liam Neeson, Andrew Garfield, Adam Driver
Distribuição: Imagem
Data de estreia: qui, 09/03/17
País: Estados Unidos
Gênero: drama
Ano de produção: 2015

Bruno Giacobbo

Um dos últimos românticos, vivo à procura de um lugar chamado Notting Hill, mas começo a desconfiar que ele só existe mesmo nos filmes e na imaginação dos grandes roteiristas. Acredito que o cinema brasileiro é o melhor do mundo e defendo que a Boca do Lixo foi a nossa Nova Hollywood. Apesar das agruras da vida, sou feliz como um italiano quando sabe que terá amor e vinho.
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