Deserto Particular crítica do filme brasileiro indicado ao Oscar 2022

‘Deserto Particular’, um Brasil de extremos

Ana Rita

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29 de novembro de 2021

Vivemos um período de extremos, sejam sociais ou políticos. Nos últimos anos no Brasil, a violência vem aumentando de forma assustadora. Não digo violência associada a assalto, mas notamos que o clima entre os brasileiros se mostra mais complicado. Um período no qual o preconceito e a intolerância se torna mais presente a cada dia. Seja por casos de feminicídio, homofobia ou transfobia.

Importante ressaltar que, de acordo com o Dossiê dos Assassinatos e da Violência Contra Pessoas Trans Brasileiras 2020, entregue pela Associação Nacional de Travestis e Transexuais, o Brasil é o país que mais mata travestis e pessoas trans no mundo.

A masculinidade tóxica sempre reinou em nossa sociedade. Homens e mulheres sofrem com isso. Ser ‘macho’ é não ter sentimentos, ser agressivo, é ser ‘homem’. Trazendo uma reflexão um pouco romantizada dessa salvação do homem dessa masculinidade tóxica, o diretor Aly Muritiba chega aos cinemas com seu novo filme Deserto Particular.

O longa, que disputa uma vaga na categoria de Melhor Filme Internacional no Oscar de 2022, foi premiado no Festival de Veneza de 2021 e teve sua estreia na 45ª Mostra de SP.

A trama de Deserto Particular

Com a dialética geográfica e cultural de nordeste e sul, vemos brasis diferentes. E ainda acrescenta-se às diferenças que resultam nessa intolerância de gênero e sexualidade que nos rodeia, Deserto Particular traz a história de Daniel (Antonio Saboia), um policial que é afastado do serviço após se envolver em uma confusão no trabalho.

Ele mantém um relacionamento a distância com Sara, que mora em Sobradinho, na Bahia, mas eles não se conhecem pessoalmente. Após Sara parar de responder suas mensagens, Daniel parte em sua busca, cruzando o país, apaixonado pela desconhecida e misteriosa mulher.

A masculinidade tóxica

Daniel é um jovem policial, filho de um antigo sargento de Curitiba, que agora com o pai já idoso, doente e precisando de cuidados, é quem o ajuda. Notamos que o rapaz foi criado em ambiente no qual ser ‘homem de verdade’ é exalar masculinidade, ser agressivo, ser o garanhão.

Após se envolver em uma confusão na polícia, Daniel é afastado e vai precisar passar por acompanhamento psicológico. Não fica explícito o que de fato aconteceu e o que o jovem fez ou foi capaz. Mas isso também não é relevante, afinal, a violência dentro das instituições policiais é algo bastante comum. Agora desempregado, ele começa com alguns bicos de segurança, onde mesmo sem nenhum incidente direto, deixa evidente o temperamento forte do policial.

O acidente que abala a carreira de Daniel como policial não é desenvolvido. Não sabemos ao certo o que aconteceu, nem suas motivações. Mas o filme Deserto Particular mostra um possível arrependimento do jovem e parte de suas consequências. Como durante a visita ao hospital, onde visita o recruta internado, do qual era instrutor, por exemplo.

A busca por Sara

Apesar de morar com o pai e ter contato com sua irmã, a vida de Daniel é solitária, uma possível reclusão pelo que aconteceu. Sua principal companhia é Sara, uma jovem com quem troca mensagens, e se diz apaixonado.

Eles não se conhecem pessoalmente, apenas por mensagens, áudios e chamadas. E a demora de Sara em responder as mensagens já é o suficiente para  Daniel embarcar em uma viagem em busca da amada.

A frustração pelo que aconteceu na polícia, um ambiente de masculinidade tóxica no qual foi criado justificam essa carência e necessidade de atenção de Daniel. Afinal, homem chora sim e tem sentimentos, que, muitas vezes acabam sendo reprimidos. O que pode responder ao ‘porquê’ da repentina viagem em busca de Sara, partindo do Paraná até o interior da Bahia, em Sobradinho.

Miragem e encanto

Chegando na cidade, Daniel não consegue contato com a moça, que continua sem responder e parece não existir. Ninguém da cidade conhece. Sabemos que a internet está repleta de catfish, uma pessoa que cria perfis falsos nas redes sociais, fingindo ser alguém que não é, mudando sua aparência, gênero e muito mais. Um mistério ao redor de Sara começa a ser criado, aumentando a expectativa do espectador pelo grande encontro.

O jovem policial imprime fotos de Sara e espalha pela cidade, até que recebe uma ligação sobre possíveis informações da jovem. Um encontro é marcado e Daniel conversa com o homem que havia ligado, que quase não fala de Sara, como se buscasse conhecer mais Daniel e saber sua motivação e intenção com essa busca. Ele diz que a mulher costuma ir a uma determinada boate, indicando ser um possível local onde o personagem de Antonio Saboia a encontrará.

Sara aparece para Daniel como uma miragem. Ele achou o que mais procurava, mas sem saber o certo o que havia encontrando. Se cruzam, mas não se falam, não se tocam, como no conto de fadas da Cinderela, onde qualquer toque quebra o “encanto”. Um mistério ronda Sara, assim como Daniel. Continuamos sem saber nada sobre a jovem, que sai fugida de carro da boate.

O segredo de Sara

Sara esconde um grande segredo, que não apenas em uma cidade do interior seria condenada, mas em boa parte do Brasil conservador e transfóbico. Sara é Robson (Pedro Fasanaro), que se monta como a mulher que Daniel conhece.

Então, essa personagem nos é apresentada. Robson mora com a avó em Sobradinho, uma senhora extremamente religiosa, que, com o neto, frequenta a Igreja Vontade de Deus. Em um ambiente religioso e conservador, Robson/Sara não pode ser quem realmente é.

Mais uma vez Daniel encontra Sara na boate. Os dois se beijam, conversam e ele acaba descobrindo que ela também é Robson. Assim vemos o ego masculino se ferindo. Afinal, Daniel foi ‘enganado’, alegação muito usada quando homens cis heterossexuais têm qualquer envolvimento romântico ou sexual com mulheres trans ou travestis.

Cura Gay

Mesmo com Daniel transtornado, Sara continua falando. Conta sobre a formação e construção da cidade de Sobradinho e entendemos porque está lá. Robson foi mandado para que a avó pudesse ‘consertá-lo’, ‘curá-lo’.

É impressionante e completamente esperável, por mais paradoxal que seja, que em 2021 ainda se fale sobre cura gay ou salvação dessa vida de depravação. O Brasil é um país conservador, bastante religioso. E mesmo com uma das melhores constituições do mundo, a intolerância reina. Igrejas, sejam evangélicas ou católicas, chegam sempre com o discurso de conversão, encontrar Jesus e largar essa antiga vida, como dito por um ‘ex-gay’ que vai conversar com Robson, para tentar ‘curá-lo’.

Salvação

O conflito com Daniel é previsível, mas bem trabalhado. Um homem cis heterossexual agressivo, um ‘macho’ que foi ‘enganado’. A reaproximação de Daniel e Robson, apesar de muito rápida e possivelmente, irreal, é elaborada de forma natural. Dessa forma, vamos nos apegando mais aos dois personagens, não esperando um futuro relacionamento, mas um momento de redenção.

Fugindo da tentativa de ‘cura gay’, Robson decide se mudar para o Rio de Janeiro, e na rodoviária, encontra Daniel, que se mostra preocupado e com sentimentos por Robson.

Sem final feliz

Por mais que seja interessante a ideia de ‘curar’ um homem machista e homofóbico, com o surgimento de um relacionamento gay, isso também soa estranho. Afinal, a ideia de uma ida abrupta de um extremo a outro. Rápido e facilmente Daniel se aceita e tem relações com Robson, foi salvo. Mesmo que seja entregue um final bonito e feliz, o não desenvolvimento dessa aceitação de Daniel é um tanto quanto desconfortável.

Mesmo assim, Deserto Particular é um belo e reflexivo filme, uma tentativa de espelho de um Brasil cheio de esperanças, no qual a intolerância e a violência podem ser apenas passado. O longa de Aly Muritiba é sobre soluções e se resolver. Não é um final feliz de um casal, mas é o resultado de uma jornada de autoconhecimento.

Onde assistir ao filme Deserto Particular?

A saber, o filme Deserto Particular está disponível para assistir exclusivamente nos cinemas. Aliás, vai comprar algo na Amazon? Então apoie o ULTRAVERSO comprando pelo nosso link: https://amzn.to/3mj4gJa.

Trailer do filme Deserto Particular

Deserto Particular: elenco do filme

Antonio Saboia
Pedro Fasanaro
Thomas Aquino

Ficha Técnica

Título original do filme: Deserto Particular
Direção: Aly Muritiba
Roteiro: Aly Muritiba e Henrique Dos Santos
País: Brasil e Portugal
Duração: 125 minutos
Gênero: drama
Ano de produção: 2020
Classificação: 14 anos

Ana Rita

Piauiense, nordestina e estudante de Arquitetura, querendo ser cinéfila, metida a crítica e apaixonada por cinema, séries, arte e música. Siga @trucagem no Instagram!
8
Créditos Galáticos

Créditos Galáticos: 8

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