Diário de bordo do diretor: O Crime da Gávea (Parte II)

Colaboração

Esta é a segunda parte do relato de um diretor que vivenciou ‘a dor e a delícia’ da concepção do primeiro longa-metragem.

O Crime da Gávea foi recém-filmado pelo diretor Andre Warwar, com roteiro adaptado de Marcílio Moraes, que também assina o romance literário de mesmo nome. O thriller policial narra a história de Paulo, um homem que investiga a morte da própria esposa.

O filme foi rodado de forma independente pela MD Produções Artísticas e está em fase de pós-produção. No elenco, nomes como Ricardo Duque, Simone Spoladore, Aline Fanju, Almir Telles, Celso Taddei, Roberto Birindelli, Sílvio Guindane e Tessy Callado.

Leia aqui a primeira parte do relato.

Agora, o Blah Cultural apresenta o:

*** Diário de bordo de Andre Warwar – 25/01/2013 – Parte II***

O Crime da Gávea - Pedra

(…) Depois disso partimos para as cenas noturnas propriamente ditas. O João iluminava apenas com um refletor de ‘leds’ atrás de um difusor que fazia a luz principal e diegeticamente representava o luar. O resto da luz ficou a cargo de lanternas que os personagens seguravam, e os fundos sempre de luzes distantes da cidade, mostrando, portanto, a altura do lugar. Simples e magnífico ao mesmo tempo. Seguimos fazendo take após take, cena após cena em sintonia total. Todos, sem exceção, estavam com uma motivação única que era alimentada a todo instante por momentos mágicos. O elenco magistral, a luz incrível, planos simples que contavam a história e closes, closes e mais closes. Lembravam o meu dia a dia de diretor de imagens. “Fecha mais Cristiano!” (nada mais redundante do que pedir pro Cristiano fechar, cara folgado só trabalha fechado e não perde o foco).

Aliás, o foquista de ontem também era um cara talentoso, marcas difíceis e uma penumbra total. Só para constar: quanto menos luz, mais crítico é o foco, porque o fotografo tem que trabalhar com o diafragma da câmera (passagem de luz) muito aberto e a distância focal (espaço em que se encontra o foco) é minúsculo. Para se ter uma ideia: quando o olho está em foco a orelha do personagem não está mais. Isso quer dizer que, se o ator aproximar milímetros, o cara tem que corrigir o foco. Marcava a cena e perguntava se era complicado pra ele, o cara na humilde dizia: “Vamos lá”. O João falava “Vai no talento “. Assim fomos a noite inteira, sem perder um foco sequer.

O Crime da Gávea - Pedra Noite

Minha euforia com os closes vem de uma questão filosófica, que tive durante todas as filmagens. Não sei por que alguém gritou e outros acreditaram que os planos únicos, chamados de plano-sequência (aquele que todo aluno de primeiro período de cinema quer fazer, mas quem sabe fazer mesmo é o Brian de Palma) eram mais adequados para o nosso tipo de produção. Mentira. Um plano-sequência em que o câmera erra na última frase tem que ser rodado do começo, enquanto que a narrativa clássica, plano e contra plano, basta repetir a parte em que foi o erro. O problema é que por eu ser também um profissional de televisão, criou-se um preconceito burro sobre a forma clássica de decupar uma cena. Aquela em que todo movimento de câmera e enquadramento tem que funcionar em favor da dramaturgia, e não ao contrário. Para resolver o problema sem conflitos, busquei na “mise-en-scéne” marcas que me permitissem na montagem cortar aquele plano-sequência em vários, cheios de closes, planos médios e planos próximos. Briguei por outros tantos e deu certo no final. Só para terminar esta história de close, quem inventou isso não fui eu, nem tampouco a televisão. Foi um cara chamado Griffith em 1915, no filme que é considerado o marco do surgimento da linguagem cinematográfica, “O Nascimento de Uma Nação”. O cinema até então não passava de teatro filmado. Com o surgimento desta nova gramática, o Cinema passou a existir como expressão artística. Sergio Leone, John Ford, Fellini, David Lean, François Truffaut, Luis Buñuel , Glauber Rocha, Scorsese, e tantos outros sabem disso. Além do Márcio, que é professor de cinema.

Voltando ao alto da pedra. De tempos em tempos, mandava um torpedo para minha amada esposa, companheira de todas as horas, Sabrina Moreira, que não pode ir por conta do trabalho, mas acompanhava tudo lá debaixo. Sabrina é uma companheira maravilhosa, só ela sabe como está difícil pra mim este processo. Tem a maior paciência quando entro em crise, tipo “ser ou não ser”, ou quando filosofo sobre o quanto a vida não faz sentido. Deu-me uma família, uma irmã pro meu filho, e adora ouvir minhas histórias. Nossa casa foi guarda-roupa, e ela fez um figurino maravilhoso para o filme.

Ricardo Duque, Andre Warwar e Márcio Melges

Ricardo Duque, Andre Warwar e Márcio Melges

Rodamos plano após plano e finalmente chegamos à cena crucial. O personagem do Birindelli chama-se Jordão e por conta de escolhas erradas se vê pendurado num grande abismo, tendo como única pessoa para ajudar seu rival e inquisidor Paulo. Suspeitando da fidelidade da falecida esposa, Paulo resolve confrontar Jordão no alto da montanha. O lugar que escolhemos para fazer a cena oferecia realmente algum perigo. Era um pequeno platô entre uma vegetação e o abismo. O platô era marcado por uma fenda no chão, da largura de um dedo, e a partir desta fenda tinha um caimento que se acentuava conforme se aproximava do abismo. O platô devia ter uns três metros de largura e o caimento seis metros até o vazio. Rodamos o início da cena que termina num close de Jordão. O resto da cena já havia sido gravado na Urca, mas o resultado pra mim tinha sido péssimo. Um filme é feito de acertos e erros, e tinha errado logo na cena mais importante. Fiquei com esta parte da cena na cabeça meses, pensei em tirar do filme, colocar fragmentos, ou “resolver na edição”. Mais uma vez quis arriscar. O Roberto é um ator tão visceral quanto o Ricardo e muito técnico também. O trabalho de corpo dele é incrível, e sabia que podia contar com isso a favor do filme. Podia contar com o Ricardo, e, conhecendo o que conheço do Birindelli, tinha certeza que ele toparia. Conversei com eles e expliquei minha insatisfação com o trecho já filmado, assumi a responsabilidade, afinal tudo que dá errado é culpa do diretor, e pedi pra fazer a cena de novo. Eles toparam imediatamente. No entanto havia um problema. Para dar certo, precisava que o Roberto deitasse na pedra naquele trecho inclinado, próximo ao abismo, ficasse com as mãos na fenda e um truque com a câmera daria a impressão que Jordão estivesse à beira da morte. Era arriscado. Existia o risco de cair. Era pequeno, mas existia. Discutimos sobre como fazer e os cuidados que tínhamos que tomar. Estava muito escuro e a luz que iluminava aquele pedaço de pedra vinha apenas das lanternas de nossas cabeças e da lua que caprichosamente estava quase cheia.

Roberto deitou-se, se preparou por alguns instantes e desceu o corpo na pedra pra esticar os braços. O efeito era incrível. Nas imagens ele estava realmente pendurado. Ricardo ficou então na marca e trouxe o Paulo que chegou novamente em uma explosão: “Segura, Jordão, você vai cair!” gritou na escuridão. Aquela situação era tão verdadeira que a angústia com a eminência da morte tomava a equipe. Todos começaram a viver aquela vertigem também. A execução continuou tensa. À beira da morte, Jordão gritava, pedia ajuda. O desejo interior de todos era salvá-lo. Paulo era o único ali com este direito. Com o rival à beira da morte, se tornou cúmplice. Por instantes suas mãos se tocaram. Ficaram unidos.

Roberto Birindelli e Ricardo Duque

Roberto Birindelli e Ricardo Duque

A cena seguiu e a ação tomou conta da equipe. O que Paulo decidiu fazer, o leitor deste diário poderá ver no filme. O que importa dizer é o que veio após o “Corta!”. Ninguém falou nada. Apenas nos olhamos e todos, cúmplices, sabíamos que tínhamos feito uma grande cena.

Enceramos a gravação à meia noite. Fim das filmagens. Sorrimos, nos abraçamos, comemoração contida e emocionada. Coisas lindas que todos nós fizemos, momentos únicos que vivemos, ficariam para trás. Pessoas próximas, que nunca mais veremos.

Pensei no Daniel de França que nos deixou de verdade. Como ele ia estar feliz de estar ali. No abraço do Márcio pensei que grande cara ele é. Incansável. Quis pedir desculpas por muitas vezes ter sido rude com ele. Não consegui, me faltaram palavras. Acho que entendeu. Com a Lúcia consegui, desculpei-me por tudo e disse que sempre quis o melhor pro nosso filme. Ela estava tão feliz que nem ligou. Com o Marcilio, realmente não sabia o que dizer. Ele é muito reservado. Queria, na verdade, dizer só uma coisa: Obrigado. Lembrei-me do Dudu, o cara que mais acreditou no meu talento, como ia gostar que ele estivesse ali. Do Celso Taddei, que é o grande responsável por ter feito cinema, dizendo para que me esforçasse para terminar o filme da melhor maneira. Pensei na Sabrina e de como faço as coisas para ela poder se orgulhar de mim. Senti uma saudade enorme de abraçar meu filho. Pensei na minha família, que estava lá em baixo naquelas luzinhas esperando por noticias minhas. Pensei, por fim, no meu pai, que estava nas estrelas no céu, e de como estava um pouco mais perto dele naquela hora.

Truffaut em “Noite Americana” mostra que a execução da obra artística é bem mais interessante do que seu resultado final. No cinema mais prazeroso, mais cansativo, mais demorado, mais apaixonante, mais estressante, mais enriquecedor. Naquela hora mais do que nunca sabia disso.

Antes de descer, na beirada da trilha, olhei uma última vez pra trás. Vi, banhada pelo luar, a Esfinge da Pedra da Gávea, que me olhava também. Por instantes vi tudo o que vivi naquele rosto. Será possível?

“A gente pode ver qualquer coisa no rosto de uma esfinge” diria Jordão.

Andre Warwar – Diretor

Mais informações sobre o filme na página do Facebook.

Colaboração

Aqui você encontra textos de eventuais colaboradores e leitores do ULTRAVERSO, além das primeiras contribuições de colaboradores que hoje são fixos.
NAN