Diretor Emiliano Cunha Raia 4

EXCLUSIVO: Emiliano Cunha, silêncio e adolescência em ‘Raia 4’

Ana Rita

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19 de maio de 2021

O filme Raia 4, dirigido e roteirizado por Emiliano Cunha, estreia dia 20 de maio nas plataformas digitais disponível no NOW, Google Play, Apple Tv, iTunes e Youtube Filmes.
A obra acompanha a jovem Amanda e alguns dramas e conflitos pontuais da sua adolescência, e o ULTRAVERSO teve o privilégio de conversar com Emiliano Cunha sobre o filme, bem como referências e toda a questão sonora bem marcante do longa. Então confere aí!

ULTRAVERSO: ‘Raia 4’ parte de uma certa dialética do silêncio, certo? E também tem um toque especial com a parte sonora da água e na água. Queria que você falasse um pouco da relação do silêncio com o filme.

Emiliano Cunha: Eu dou muita importância à narrativa sonora. Todos os meus curtas anteriores possuíam um protagonismo sonoro bastante importante. Não só como criador, mas também como espectador, eu gosto de ser envolvido por essa atmosfera que as vezes é deixada de lado, ou ela se torna apenas um elemento de reforço, de intenção. Acho que o som, assim como a imagem, ele é capaz de te hipnotizar, e acho que o filme tem um pouco isso.
Por isso, talvez, eu também me sinto um pouco perturbado quando os filmes são muito dialogados, ou são muito cheios de trilha ou muito efeito. Por que me afasta muito da experiência. E também por que tem a relação do sujeito. Eu sou uma pessoa bastante contemplativa. Sou bastante silencioso, falo o mínimo possível. E eu tentei transpor isso para o filme.
Nesse processo criativo, eu também tento estimular ao máximo a questão colaborativa. O “Raia”, desde o primeiro, segundo tratamento que fiz dele, eu já mostrei para o Tiago Belo, que faz o Desenho de Som, junto com a Rita Zart. Pra eles entenderem também como o som poderia atuar e ter mais protagonismo ainda. Portanto, desde 2014, já tinha esse estudo de como o som poderia ter mais protagonismo.

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Eu sou um grande fã da Lucrecia Martel, um grande fã. Acho que ela tá muito no filme também, e ela é uma diretora que pensa muito através do som. A sensorialidade tá em cima dela, tá no som. Eu sou um devoto dela, acho fantástico o trabalho dela. E o filme vem isso, na só da Amanda, por que ela não fala muito mesmo, mas tem a questão do silêncio preenchido por essa perspectiva que ela escuta.
O som que é mais realista fora da água, mais duro, mais áspero. E um som mais onírico e mais fantástico dentro dá água. Então, sem dúvida, o som tem esse protagonismo de também tingir o filme de diferentes gêneros.
O som nos afeta, seja de maneira negativa, algo irritante, mas também, pode ser um som que te acolhe. A Lucrecia tem uma fala que é maravilhosa: “que a primeira relação que a gente tem como o mundo, ela é sensorial, e através do útero, sem enxergar ainda, a gente entende o mundo através do som”.
Eu gosto muito de pensar isso. Gosto do fora de quadro, em termos de decupagem e estética, gosto muito do que a própria Lucrecia faz, por exemplo, no “Mulher Sem Cabeça”. A imagem fica num plano e tem coisa acontecendo fora de quadro e tu tá desesperado pra ver o que tá acontecendo, mas é muito mais potente quando a gente só escuta a coisa. Você não vê e a gente fica criando aquilo. Eu acho algo muito potente e nem sempre explorado na a narrativa sonora.

Raia 4 #06 - Brídia Moni, Emiliano Cunha e equipe - crédito Tuane Eggers - Ausgang

Emiliano Cunha dirigindo os atores nos bastidores (Foto: Tuane Eggers / Ausgang)

Inclusive, na cena final, que seria o 3º ato, é como se ela elevasse essa parte sensorial e experimental do filme, né? 

Emiliano Cunha: O filme vai numa escalda em que eu vou brincando com o gênero, vou dando pitadas aqui e acolá, talvez levando o espectador para um lado e depois para outro. E aí, talvez o ponto de virada, lá para o último ato, seja justamente quando um filme invade o filme e os gêneros se confluem num grande movimento aquático. E o final é quando a gente não sabe mais como se agarrar, porque a gente tá na água junto com a Amanda, não vou dar o spoiler (risos). Mas enfim, certamente ali é onde a parte experimental vem com tudo. Eu gosto muito quando as pessoas se permitem muitas leituras daquele final. Tenho dificuldade de debater com quem encerra numa coisa só. Acho muito pouco pra Amanda, para o filme. É muito mais uma sugestão, um simbolismo, do que querer encerrar ali o filme.
E tem uma coisa que ao longo das conversas eu fui me dando conta que o filme brinca, que é essa amplificação que a gente dá na adolescência. Tudo é muito intenso, a gente chora, briga, escuta a mesma música 30 vezes… Coisas que a gente olha assim e vê que isso é tão bobo. Ou aquele amor platônico, a relação com o corpo, tudo fica muito grande. E porque tudo é muito sensorial na adolescência. Você ainda não entende como racionar as coisas, nem quer, e tudo é muito amplificado. E o filme tem um pouco dessa brincadeira, o que transpõe da cabeça da Amanda, o que é ou não real.
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É muito interessante que o tema abordado seja sobre adolescência, mas com uma abordagem séria, até mais adulta. Por que você pensou nessa história, de onde veio essa ideia?

Emiliano Cunha: Foi muito curioso porque eu sempre entendi o “Raia 4” como um filme adulto. Eu sabia dos desafios dele, como o espectador tem que se entregar mais ao filme, literalmente mergulhar nele. Mas o mais curioso foi durante os festivais, principalmente os internacionais. Quando ele foi sendo cotado para as mostras geracionais de adolescência e jovens adultos. Então houve uma identificação clara desse público com o filme, o que eu achei maravilhoso. Eu levanto várias possibilidades, tratar de forma séria alguns conflitos. Tem a questão das não atrizes, que são rostos e corpos mais reais, foge desse esplendor hollywoodiano.
A temática adolescente me atrai, sou um grande fã do Gus Van Sant, na primeira fase da carreira dele, que é muito mais sensorial também, que vem através da adolescência, o jovem tentando se encontrar. Não é à toa que ele fez o “Últimos Dias”, sobre o Kurt Cobain. Um filme maravilhoso, super silencioso também. É, de fato, uma temática que me atrai.
Eu tenho um processo de criação muito sensorial também. Às vezes é uma sensação, uma imagem que eu vejo. No caso de “Raia 4”, a cena do filme que invade o filme foi a o que meio pela primeira vez. Tinha essa presença feminina muito forte, esse ambiente meio aquoso, o sangue… Então eu escrevi aquilo e na época eu gravei um ensaio sobre aquela cena. Assim, aos poucos, os elementos narrativos foram se agregando à ideia.

Emiliano Cunha entrevista Raia 4 #01 - Brídia Moni - crédito Tuane Eggers - Ausgang

Foto: Tuane Eggers / Ausgang


 
Quando entendi que o universo da natação pertencia aquela fantasmagoria no filme, foi muito natural para mim, porque eu fui atleta de natação, dos 8 aos 20 anos. Minha primeira formação não é em cinema, é em Educação Física. Eu trabalhei com natação, com aquele público. Então era algo que eu conhecia muito bem, os dilemas. E foi assim que eu fui montando e encontrando os personagens, na verdade. Foi através da junção desses dois mundos.
E tem outra coisa que me levou ainda, quando a gente nada, passamos quase todo tempo na piscina, aquela coisa de dedicação, de segunda a sábado. Aí no sábado, todo mundo exausto, a gente ia pra casa de alguém ver filme de terror, que é um tipo de consumo muito comum em adolescente. Eu também quis brincar com isso, experiências que eu tive. Aí tudo se mistura.
É muito difícil falar de processo criativo, porque você faz o caminho inverso e tem coisa que nasce muito no próprio escrever. 

Como foi o preparo dos atores? Principalmente os adolescentes, eles não são profissionais, isso dificultou em algum ponto? 

Emiliano Cunha: Tem uma máxima, acho que o Furtado que fala: “muito cuidado com piscina, cachorros e crianças”. Eu juntei duas coisas que a gente deve fugir a qualquer custo no filme. Mas sempre quis trabalhar com nadadores profissionais. Pela questão do gestual, pra mim era muito importante. Os corpos na natação são bem diferentes, principalmente corpos adolescentes, a intimidade com a água.
Nadador parece que tá sempre com a água na boca, é um negócio impressionante, parece anfíbio. A relação com a borda também, que é uma relação muito íntima com quem pratica natação, se abraçar na borda. A questão de equipe, se doar pra equipe e querer o máximo de si. Da obediência ao treinador. Tudo isso eu queria que tivesse muito vivo neles.
Então a gente foi atrás de atletas no estado. Foram mais de 120 adolescentes testados. Até que a gente chegou nesse grupo de 14, que a gente fez uma preparação de elenco de três meses, que era muito mais baseado em jogo recreativos e cênicos, de espontaneidade, para estarem dispostos a brincarem de ficção. Também de estarem numa afinidade muito grande comigo, com a câmera. E eu nadava com eles, dava treino. A gente formou uma grande equipe, foi lindo. São muito queridos. Criamos um lanço muito forte, uma confiança muito forte. Até porque não é um roteiro que é só apresentar pra eles. Eu me lembro que quando a Bridia, que faz a Amanda, leu o roteiro, ela disse: “eu não vou fazer, não vou conseguir”. A gente conversou e tal, e entendeu que era uma ficção. Ela realmente ficou assustada, mas foi muito legal.

Raia 4 #11 - Flavio Geromel (1º assistente de câmera) e Edu Rabin (diretor de fotografia) - crédito Tuane Eggers - Ausgang

Foto: Tuane Eggers / Ausgang


Quando a gente foi pra Gramado, e se vendo naqueles closes, naquela tela gigante, foi muito legal. Muitos choraram. Foi um desafio. Nenhum deles tinha a partitura profissional, poucas ferramentas de atuação. Especialmente na Amanda e na Priscila.
A Priscila sofreu uma intervenção muito forte da Direção de Arte, Sheila Marafon e Valeria Verba, que propuseram pintar o cabelo, usar a gargantilha, empoderar a Priscila, porque a Kethelen e a Brídia são muito amigas na vida real, são muito parecidas, são muito afetivas, sorridentes. E tu tinha duas personagens muito difíceis de acessar e a Kethelen empoderada pela caracterização da arte.
E a Brídia assistiu muitos filmes pra entender outros ritmos, a potência do olhar, como ela tinha que esconder mais o corpo, olhar mais de baixo pra cima. Montei uma trilha sonora super deprê pra escutar todo dia antes de ir para o set ou ensaio.
Eu até vi uma crítica no festival do Uruguai que o cara me comparou a Bresson, porque o cineasta tem um trabalho com não-ator. E eu realmente não tinha pensado, mas como eu sabia que eles não tinham uma partitura tão amplificada e a gente teria que ficar numa coisa mais pequena, com poucas reações e trabalhar mais com o olhar. E Bresson faz um pouco isso de ter falas mais monotonais, não tem muita expressão. Você vai construindo a atuação através da montagem, do próprio enquadramento.
Mas o mais legal foi descobrir que eles têm uma dedicação à repetição gestual, possivelmente porque são atletas. E eles se mostraram confiantes para preservar uma marca, como a de foco, preservar o mesmo texto duas vezes. Eu mesmo fui repensando a decupagem em cenas ao longo dos ensaios porque eu vi que eles eram capazes de fazer pelo menos umas 2 ou 3 vezes.
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‘Raia 4’ ganhou o prêmio de Júri da Crítica e o de Melhor Fotografia do Festival de Cinema de Gramado de 2019, como foi a sensação de receber o prêmio no seu primeiro longa?

Emiliano Cunha: Eu tenho um histórico em Gramado legal com os curtas. Já fui duas vezes pra nacional, com “O Cão” e com “Tomou Café Esperou”, que ganhei um Kikito pelo Design de Som. A gente queria muito entrar em Gramado, não só pela carreira de curtas que tive lá, mas também porque é um festival super grande e reconhecido. E também pra ter a possibilidade de exibir [o filme] pra equipe e pro elenco pela primeira vez. Enchemos um ônibus com os pais e mães que nunca tinham visto o filme e foi muito intenso. A gente tinha um concorrente muito forte, que vinha ganhando tudo até o momento, que era “Pacarrete”, que veio junto desde Xangai.
Eu tinha uma esperança na fotografia, porque se destacava. Pensava que talvez o som fosse ganhar, mas o de crítica eu não imaginava. Foi muito legal, foi um ano muito intenso. Foi um filme que, leitura minha, mais se arriscou na abordagem.
Quando leram a justificativa do prêmio da crítica, o texto dizia que era uma construção de uma intriga em uma narrativa sensorial através de uma personagem absolutamente silenciosa. E foi um desafio. Quando se arrisca, abre-se espaço para errar, mas também abre espaço para conquistar algumas coisas.
Fora a experiência, foi a primeira vez que eu consegui sentar numa sala cheia de gente, lotada mesmo e sentindo o filme.

Emiliano Cunha Raia 4 filme (Crédito Tuane Eggers, Ausgang) # 2

Foto: Tuane Eggers / Ausgang

Você é formado em Cinema e também é cineasta, então a bagagem de filmes e diretores é enorme. Quais são suas principais referências? Alguma delas estaria muito presente em Raia 4?

Emiliano Cunha: Eu tive um início de carreira, ainda estudante quando eu estudei muito Lars Von Trier. Gosto muito do cinema dele até ‘Breaking The Waves’, pra mim é o melhor filme dele, depois ele passou a ser eticamente contestado, e esteticamente fica complicado de defender o cara. Mas eu sempre fui de um cinema mais contundente.
Os irmãos Dardenne, sou super fã. É uma câmera mais livre, ainda mais documental, mas ainda tem o registro realista que é fantástico. São sempre histórias muito humanas, muito intensas, então respinga um pouco no “Raia 4”. O Haneke mais contundente com o fora de quadro. A Lucrecia também, na equipe do filme, a gente até tinha um código, um enquadro mais “lucrecismo”, que é quando as pessoas dialogam de lado, que uso no filme.
O Gus Van Sant nos anos 2000, como ‘Gary’. E também uma galera mais contemporânea, como a Naomi Kawase, que também pra um realismo, mas hoje em dia cada vez mais fantástico.
Em geral, são filmes mais contundentes, seja temático, seja narrativo. Mas são coisas humanas, muito à flor da pele. Um registro realista mais permitindo trabalhar também o sensorial.
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Ana Rita

Piauiense, nordestina e estudante de Arquitetura, querendo ser cinéfila, metida a crítica e apaixonada por cinema, séries, arte e música. Siga @trucagem no Instagram!
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