Naquele ponto de ônibus

Demétrius Carvalho

– Minha cidade é pequena. Quer dizer, será pequena quando crescer. Ela é pequeníssima. 5:00h, 5:40h, 6:20h, 7:00h, 7:30h, 8:00h, 8:30h, 9:00h, 9:40h, 10:20h, 11:00h, 11:30h, 12:00h, 12:30h, 13:00h, 13:40h, 14:20h, 15:00h, 15:40h, 16:20h, 17:00h, 17:30h, 18:00h, 18:30h, 19:00h, 19:40h, 20:20, 21:00h, 21:40h, 22:20h, 23:00h, 23:40h. São as horas que o ônibus passa. Pequena mas organizada. Se você reparar bem, vai ver que de 40 em 40 minutos passa o ônibus. Nos horários de pico, o tempo de espera demora só 30 minutos. Eu sei que esperar um ônibus por 30 minutos pode ser uma eternidade nas grandes cidades. O pessoal fala que o metrô em São Paulo não demora 5 minutos e você pode não conseguir entrar no próximo de tão cheio. Quer saber? Acho que isso é mentira. É um exagero que esse povo de cidade grande gosta de contar. O famoso contar vantagem sabe? Aqui no máximo que vai acontecer, é você não conseguir sentar em alguma das viagens no horário de pico. Já em alguns horários, pode haver 2 ou 3 pessoas. Se bem me lembro, 2 ou 3 vezes não houve passageiro algum no coletivo, mas não por toda a viagem. Apenas em parte do trajeto.
– Ah… desculpa, meu nome é Rosivaldo. Ajuda a passar o tempo conversar enquanto dirijo, mas não pense que sou desatento com o serviço não minha senhora. Tá vendo a plaquinha ali dizendo para conversar comigo só o indispensável? Eu to aqui conversando com a senhora, mas não tiro a vista da rua. Só olho para as pessoas quando o ônibus não está em movimento. O cobrador aí atrás é o Quinho. Francisco, Francisquinho, acabou Quinho. Ele não é muito de conversar sabe? Acho que cochilar nos horários mais vagos para ele é que ajuda ele a passar o tempo. Eu não tenho essa alternativa sabe? Se somar o que ele fala no ano inteiro, deve empatar com o que eu falo em um dia, mas ele não é chato não sabe minha senhora. Apenas calarão…
Olhei para trás e o dito Quinho imitou uma boca com a mão e a leitura labial não era difícil de entender… blá blá blá, mas ele sorria. Duas garotas por volta de seus 13 anos abafaram risinhos com as mãos. Eu poderia jurar que essa cena se repetia por várias vezes. O ônibus se movia vagarosamente, já a boca de seu Rosivaldo não parava um segundo.
– Olha dona, o seu ponto é o próximo ali no poste vermelho e então é só atravessar a rua. A entrada da escola fica do outro lado da calçada. Não sei se a senhora vai pegar algum aluno lá, nunca te vi aqui e sabe como é né? Em cidade pequena, todo mundo se conhece. Sei praticamente o nome de todos os passageiros que carrego e se não demorar uma eternidade para ver a senhora novamente, me lembrarei como se chama se me disser seu nome. – Elisa, falei. – Pois bem Dona Elisa. Se estiver esperando a aula acabar, falta 20 minutos, daí vai ser tanto menino correndo e gritando que a senhora vai querer sair correndo desse ponto.
Desci depois de dar uma olhada para trás. As mãos de Quinho… blá blá blá, os risos abafadinhos pelas mãos das garotas. Um sol causticante. Não havia uma sombra sequer. Era eu, um silêncio sepulcral. Não havia um pássaro, galo, ser vivo que fosse para lutar contra aquele sol. Foram 20 minutos de um silêncio ensurdecedor de fato, mas ao toque de término da aula, não levou 45 segundos para uma explosão de crianças correr para tudo quanto é lado. Uns tinham bicicletas, outros saiam correndo e os menores, tinha uma pequena comitiva de pais, parentes ou seja o que fosse para resgatar aqueles pequenos. Impressionante como algum deles conseguiam ter gritos agudíssimos. Algo beirando o infra-som. Não sei se por coincidência, ouvi uns cachorros latidos. Dizem que agudos dos quais já nem somos capazes de ouvir, perturba cães e gatos. Do lado de cá da rua, apenas eu e o poste vermelho. Cerca de 3 minutos depois a diretora da escola apareceu. Não sei por que ela marcou comigo na parada de ônibus em frente a escola. Eu imaginei alguma estrutura mínima e sombra. Quem sabe uma lanchonete onde pudesse sentar e beber uma água, mas não. Era eu, um poste e um calor que faria a pressão do diabo cair. Que marcasse dentro da escola então…
Mais um ônibus passa enquanto conversávamos. As últimas crianças se foram com seus acompanhantes. Uma pessoa desceu do ônibus e cumprimentou a diretora. Ele tinha cara de professor. Eu chutaria que era de história. No mínimo da área de humanas, Uns cabelos desgrenhados e grandes para um homem, uma barba que deixaria Fidel contente e olhos esbugalhados querendo olhar por cima do óculos que devia ser para longe. Ela pelo menos me explicou que marcou ali por que desde pequena, ela que estudara ali, passava muitos minutos de bons anos de sua vida pensando parada ali. Ainda hoje, as vezes ela atravessava a rua e ficava ali naquele ponto de ônibus pensando quando precisava resolver alguma coisa. Alguns minutos conversando e expliquei-lhe que não estava ainda certa de que aceitaria a proposta. Tinha que me decidir se realmente eu queria me mudar para uma cidade tão pequena. O resto, foi ela que falou por todo o tempo. Lembrei da mãozinha da Quinho… blá blá blá… só me concentrei quando percebi que ela me abraçava novamente para se despedir de mim…
Era eu, o calor, o poste vermelho, o silêncio ensurdecedor e pensei que ali poderia ser um bom lugar para se pensar de fato. Eu preferiria no começo da manhã quando o sol ainda não fritava os transeuntes. Então eu percebi que todas as pessoas que eu tinha visto desde que cheguei na cidade, sorriam. Um barulho de carro se aproximando. De ônibus na verdade. Ele vira a esquina e o sorriso do Rosivaldo estampava a emoldura em que ele se encontrava dentro do ônibus.
– Pensei que Dona Elisa voltaria no outro ônibus. Essa hora é apenas eu e o Ricardo no outro ônibus, mas pode entrar DONA ELISA, viu como eu me lembro do nome da senhora? Mas como eu tava falando. Se não pegar o outro que é o Ricardo, vai pegar o meu.
Olhei para Quinho, movi a minha mão…blá blá blá… duas senhorinhas abafaram os risinhos entre as mãos. Olhei pela janela e lamentei que em São Paulo não houvesse um ponto de ônibus como aquele…

Demétrius Carvalho

Demétrius Carvalho é músico, multi-instrumentista e produtor musical de origem, mas anda com frequência em outras artes passando pela literatura, fotografia. Blogueiro, da suas impressões ainda sobre cinema, artes plásticas e definitivamente é multimídia adorando sobrepor arte sobre arte.
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