O conto do faz de conta
Demétrius Carvalho
3:19h da manhã. Acabo de acordar de um sonho. Me sento na cama e afundo minha cabeça entre as mãos como se fossem as pernas da garota do sonho. A textura das mãos rente a cabeça, os cabelos entre os dedos, o silêncio. Misturo o sonho com as sensações, mas levanto-me. Vou na cozinha beber água. Desisto. Vou na sala, whisky sem gelo mesmo para ver se ele me apaga. Sento novamente, pego o violão e começo a tocar qualquer coisa. Não me vem nada exatamente bom, mas acendo um cigarro e pelo menos o tempo dele, eu tocaria. Me achei meio sexy. Uma cueca branca, um violão, um copo de whisky e um cigarro. Tinha que ser foto em preto e branco e com muita fumaça do cigarro para dar o efeito.
A arte passou em 4 minutos e ficou o tesão. Culpa daquela menina dos sonhos. Nem sei quem é, mas li em algum lugar que nossa mente não cria novos rostos em sonhos. Todos os desconhecidos dos sonhos, já vimos em algum canto. Peguei o celular e escrevi uma mensagem, mas não mandei. A mão resolveu o tesão e o corpo relaxou. Até cochilei novamente, mas despertei. 3:52h e fui na cozinha novamente. Um copo de whisky em uma mão, de água em outra. Lavei os copos juntos com a louça que estava na pia. A água gelada pareceu dar uma energizada em meu corpo, senti os pêlos do corpo eriçarem.
Voltei para o quarto apenas para pegar uma camisa, mas toquei um pouco mais de violão. Uma ideia um pouco melhor surge e com o violão vou para a sala. Percebo que estou sem camisa ainda e volto para por. Passo então no banheiro. O barulho da urina caindo na vaso, aponto para a água, para o vaso, para a água… essa hora faz muita diferença e parece alto. A urina amarelada… preciso beber mais água…
Ligo a tv, mas essa hora, só zumbis, filmes sobre a 2ª guerra mundial e igrejas, 4 ou 5 canais com seus pastores encenando de forma previsível. Tinha também canais de venda. Tapetes persa, jóias, eletrodomésticos. Quem compra essas porras uma hora dessas?
Outro cigarro, outro cochilo, mas dessa vez é uma brasa do cigarro que me acorda depois de perfurar a camisa e queimar o meu peito. Levantei quase que de um pulo, elétrico novamente mas fui para o quarto para ver se dormia de fato. Um pouco mais de violão, a idéia que já queria fugir de minha mente é resgatada, Canso e deito. Olhos para o teto, mente para além dele. Uma ansiedade, das afetivas, o sonho, a garota do sonho, o teto, um inseto gravitacionando ao redor da lâmpada. Não entendo o motivo, mas estaria mentindo se dissesse que também me entendo.
O cansaço começa a bater e penso em ler mas desisto. Seria complicado segurar outro copo de whisky e o livro ao mesmo tempo. Pouco mais que duas para eu ter que acordar, ou já estaria acordado? Não, a gente sabe quando não está acordado. Esse é o acordo entre os que não acordam, no entanto, eu estava sereno. Ia acordar completamente quebrado, talvez até com um pouco de ressaca, chegaria na redação do jornal e me sentiria péssimo ao olhar para todas as outras pessoas que ali trabalham, mas no meio da tarde, o jogo começaria a virar e então 17:00h, eu teria uma certa recompensa por ser o mais satisfeito de todos. As pessoas que trabalham comigo não conseguem entender como eu consigo criar os contos, mas eu acho que a parte deles é muito mais complicada. Seja qual for o setor, seja ele cinema, esportes, política, novelas, o que for, e a pessoa encarregada tem que perder um tempo assistindo essas coisas e descrevendo tudo. Não tem muito para onde fugir. Pior que isso, são os que trabalham com publicidade tendo que vender espaço no jornal. Tenho minhas dúvidas quanto a quem escreve sobre horóscopo. Eu sinceramente acho que o trabalho desse setor parece o meu. Só inventar. A diferença é que eu reconheço que é tudo criação da minha cabeça, enquanto os desse setor não. Buscam explicações científicas para puro folclore.
O relógio se aproxima de 5:00h e quase mando a mensagem de novo. Minha mente titubeia. Penso em outro copo, outro trago, mas a mente continua em paz. Talvez durante a copa eu não saiba sobre o que escrever, mas amanhã está garantido. Basta eu descrever a noite vivida e dizer que eu estava inspirado. Esse é o segredo. Agir como se a galáxia tivesse me escolhido e me psicografado uma boa história. Se eu assumir que foi apenas uma noite vivida realmente, seria discriminado pelas pessoas que trabalham ao meu redor. Só não podia chegar com cheiro de whisky, senão teria que alterar a bebida no conto para café.
O sono começa a bater, as imagens em minha cabeça começam a embaralhar, não sei se vi, pensei, sonhei, alucinei na garota do sonho. Abro os olhos pela última vez. 5:22h e me entrego ao mundo do faz de conta para que logo mais no mundo real eu resgate o mundo real como se ele fosse do meu mundo do faz de conta. O conto do faz de conta.