Os Miseráveis de Hooper – uma crônica
Colaboração
****Colaboração de Aline Macedo****
Quando assisti “O Discurso do Rei” (2010) no cinema pela primeira vez, não consegui entender muito bem o que o diretor Tom Hooper estava fazendo de diferente, só instintivamente compreendi que tinha algo novo ali. Ele é inovador por um caminho que passa longe da edições super picotadas e das elipses corta-e-engole-seco.
Voltei ao cinema para ver de novo o mesmo filme e reparar no motivo para tantos Oscars, e foi então que eu (acho que) entendi a do Hooper: a) ele não tem medo de emoção; b) ele te joga dentro da história: fui direto da minha poltrona no cinema para a sala de terapia da fala de Lionel Logue (Geoffrey Rush); c) ele não manipula emoção (oi Lars von Trier!), simplesmente a deixa fluir.
De 2010 para 2013. Fui assistir a Os Miseráveis numa situação sui generis: uma pré-estreia para convidados da Jornada Mundial da Juventude (evento organizado para receber o Papa no Rio de Janeiro em julho), na condição de voluntária. Ajudei todo mundo a encontrar seus lugares, e a contragosto, fiquei para assistir ao filme. Explico: histórias como as de Jean Valjean, Fantine, Éponine e Javert acabam comigo. Minha reação com cinema é física: choro, me acabo, sofro, não olho, e se for terror, solto gritinho. Dois anos de aulas de cinema não apagaram meu espírito de plateia comovida. E como teria que ajudar na saída da sessão, achei melhor ficar do lado de fora… Mas a curiosidade berrou comigo e lá fui eu assistir ao musical numa plateia composta por bispos, padres, freiras e jovens voluntários de tudo que é canto do mundo.
A primeira sequência me deixou com a conhecida sensação de amor cinematográfico à primeira vista. Todos os elementos de manual de apresentação de personagem ali na frente, muito bem empregados: o protagonista Jean Valjean (Hugh Jackman) afundado nas águas, escravizado, enquanto o antagonista Javert (Russell Crowe) no ponto mais alto possível, observando-o, julgando-o, impecável nas suas vestes de senhor da lei.
Na canção “What Have I Done”, concordei com a opinião do “The Guardian” de que Hugh Jackman merecia um prêmio Nobel além do Oscar. Mas foi daí que começou um pequeno incômodo com a história: emoções sinceras, mas muita plasticidade na direção de arte e cenários. Essa pequena sensação de discordância me deixou escapar da história algumas vezes, e olha que eu embarco em propostas estéticas do estilo “Moulin Rouge” num piscar de olhos, mas nos Miseráveis não consegui. Mesmo com a câmera tão perto dos atores, mesmo com a emoção tátil da atuação de Anne Hathaway cantando as dores de Fantine, a França de brinquedo na tela sussurrava no meu ouvido: é um filme, é um filme. O lúdico deixa de ser acessório narrativo para ser narrativa.
Depois de uma leve pontada de decepção, o casal Thénardieu chega à tela para tocar fogo na trama, e esses carismáticos perversos me ajudaram a fazer as pazes com o filme. Sacha Baron Cohen e Helena Bonham Carter tem química e operam um pequeno milagre: a gente quer que eles fiquem na tela, mais um pouco, mais um pouco, mesmo sendo mauzinhos com a Cosette – Isabelle Allen, quase uma pintura.
A mesma fofura e talento estão no menino Gavroche (Daniel Huttlestone), que abre o ato dos adoráveis estudantes. Tudo vai bem até Cosette (Amanda Seyfried) chegar e atrapalhar Éponine (Samantha Barks) no plano de conquistar Marius (Eddie Redmayne). É que eu tenho um bodinho da Amanda desde que ela cometeu aquele crime em forma de filme chamado “A Garota da Capa Vermelha” (2011), e daí a antipatia reina quando ela entra em campo, mas, a essa altura, eu já estava curtindo a barricada, o clima revolucionário e torcendo feito doida por Éponine. Bebi a vitamina feita da mistura cinema/teatro sem entender muito bem as proporções, mas adorando o gosto.
O último ato, compartilhado com a minha plateia espiritualizada, foi cheio de lágrimas, fungadas, pescoços imobilizados, quadris nas pontas das cadeiras, aplausos sinceros e a sensação de que tudo é possível dentro e fora da tela. Hooper lavou a alma de todo mundo. Quanto a mim, ainda escuto as canções de Os Miseráveis. Sem fone, do lado de dentro.
BEM NA FITA:
Hugh Jackman, Hugh Jackman, Hugh Jackman, as crianças, Samantha Barks, Russell Crowe – minimalista e perfeito como sempre, a pensão dos Thénardieu, as músicas e a coragem de Tom Hooper de preencher todos os cantos da tela com emoção.
QUEIMOU O FILME:
Cenários, Amanda/Cosette, Excesso de planos vertiginosos.
FICHA TÉCNICA:
Diretor: Tom Hooper
Elenco: Hugh Jackman, Russell Crowe, Anne Hathaway, Amanda Seyfried, Sacha Baron Cohen, Helena Bonham Carter, Eddie Redmayne, Samantha Barks, Aaron Tveit, Daniel Huttlestone, Isabelle Allen, Colm Wilkinson e grande elenco.
Produção: Eric Fellner, Debra Hayward, Cameron Mackintosh
Roteiro: William Nicholson, baseado no musical adaptado da obra de Victor Hugo
Fotografia: Danny Cohen
Trilha Sonora: Claude-Michel Schönberg