ReConstrução

Demétrius Carvalho

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4 de dezembro de 2014

Todo dia ela faz tudo sempre igual…

Me sacodiu, me sorriu e me beijou com a boca de hortelã.

Era para ser igual como os outros dias. Ela dizer para eu me cuidar e essas coisas que diz toda mulher, que me esperaria para o jantar e me beijar com a boca de café.

Logo na saída de casa, consulto o celular/computador/vida de cada um de nós e então eu simplesmente soube que um amigo havia falecido. Havia ficado hospitalizado por cerca de 25 dias e uma pneumonia que desencadeou isso, que desencadeou aquilo que culminou com uma infecção generalizada, que deu off em seu celular/computador/vida.

Celular… computador… com puta dor… sem vida.

A notícia me abalou e não interessava que não o via de fato uns 20 anos e que talvez uns dez mesmo em tempos de redes sociais. Será que o veria nos próximos dias? Meses? Anos? 20 anos? Talvez não e não era esse o problema. A desconexão eminente era o que me dilacerava no momento.

Meus sentimentos por ele iam wi fi e eu só podia esperar que nossos celulares/computadores/vida se conectassem naquele momento e o dia foi estranho. Foi surdo no meio da barulheira de sempre, ou talvez meu silêncio falasse mais alto. Pensei que tinha passado o dia em câmera lenta, mas ao final do dia, havia produzido e embalado 183 caixas. 9 acima de minha média. Ok. Não era meu recorde, mas era um número muito alto para quem não conseguiu pensar. Talvez esse tenha sido o segredo… não pensar.

Hora de voltar para casa e a cabeça estava completamente distante. Paralisei em frente da barbearia onde meu avô cortava o cabelo e trazia o meu pai que trazia-me e eu já trazia o meu filho… Será que meu bisavô cortava aqui? Meu neto cortará aqui? Isso não interessava por hora, o que me paralisou foi na verdade um flash de que ali, cerca de vinte anos atrás eu via pela última vez o meu amigo. Não lembro quem cortou o cabelo primeiro, mas o outro ficou por ali na escada sentado e conversando besteira. Não parecia que seria a última vez que nos veríamos. Daí depois disso eu viajei de férias, quando voltei, soube que ele havia se mudado de bairro e simplesmente perdi o contato dele. Confesso que por algum tempo, ele praticamente não existia mais em minha memória até ser reencontrado pelas redes sociais. Foi aquela empolgarão, aquela promessa de vamos nos ver, jogar bola, tomar uma cerveja e nada aconteceu. Eu casava, ele viajava, eu tinha que trabalhar, ele estudar e foi-se escorrendo por novas teclas e conexões em nossos celulares/computadores/vidas…

A porta da barbearia se fecha com o dia se aproximando de seu fim. Não reparava em seu Oswaldo há muito tempo, mas notei hoje mais velho. Realmente mais velho. Me cumprimentou com aquele olhar simpático, mas cansado e se foi. Fiquei olhando para a portão de correr. Visivelmente mais acabado também. Riscado, com papel adesivo, sujo e feio como se fosse cada um de nós se desgastando com o tempo, mas eles possuem lá suas vantagens. Uma reforma e ele pareceria novinho em folha. Já eu, meu amigo que se foi, seu Oswaldo ou mesmo meu filho, não tem volta.

Sentei e saquei meu celular/computador/vida.

– Ingrid?
– Oi?
– Lembra do Léo?
– Léo… Léo… que Léo?
– Aquele do colégio. Primo do Rafael.
– Ah, nossa… quanto tempo. Sei sim, o que tem?
– Vou dar uma passada na casa dele. Só para dizer um oi. Demoro meia hora tá?
– Mas hoje? Assim do nada? Qual o motivo?
– Nenhum em especial, apenas que se eu esperar para amanhã, pode virar 20 anos e ele pode ter ido, ou mesmo eu ido dele por um único dia e nunca saberemos.
– É. A vida não está sob nosso controle. Passei a tarde pensando na Renata por causa disso…
– Amanhã é sábado. Chama ela para ir ao parque conosco.
– Será?
– E o que vamos fazer? Ver tv pensando que a gente poderia estar fazendo aquilo que a gente teve preguiça de fazer? Passam-se alguns segundos em silêncio e sei lá o que ela pensava. Pode ser que ela tenha pensado no sei lá que eu tenha pensado…
– É… vamos. É uma boa.

Seis da tarde como era de se esperar ela pega e me espera no portão diz que está muito louca paa me beijar e me beija com a boca da paixão. Disse para eu não me afastar, me jurou amor, me apertou até quase sufocar e me morde com a boca de pavor…

Demétrius Carvalho

Demétrius Carvalho é músico, multi-instrumentista e produtor musical de origem, mas anda com frequência em outras artes passando pela literatura, fotografia. Blogueiro, da suas impressões ainda sobre cinema, artes plásticas e definitivamente é multimídia adorando sobrepor arte sobre arte.
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