RESENHA | ‘Os Miseráveis’ e Victor Hugo são transcendentais e tratam de assuntos discutidos ainda nos tempos atuais

Natalia Gulias

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6 de março de 2017

“Enquanto houver lugares onde seja possível a asfixia social; em outras palavras, e de um ponto de vista mais amplo ainda, enquanto sobre a terra houver ignorância e miséria, livros como este não serão inúteis.”

“Os Miseráveis” de Victor Hugo inicia-se com esse prefácio de intensa significação. Demonstra, desde a primeira página, que a obra não surgia apenas como uma literatura famosa e respeitada, mas sim como um grito desesperado por justiça, em função dos pobres, dos camponeses, dos desesperados, das mulheres, das crianças e, enfim, de uma população, em geral, necessitada.

O trecho não faz parte do livro em si, mas dá abertura ao enredo de conflitos que retratou os eventos da Revolução Francesa, sobre a ótica dos desesperados. Dividido em cinco partes bem definidas na reprodução cinematográfica do livro, cada uma acompanha as histórias que explicitam a situação do povo francês e demonstram sua evolução à medida que intensifica-se a adesão do povo ao movimento. Além disso, essas cinco partes entrelaçam-se de acordo com o acaso da fervorosa França.

A obra relata como as estruturas sociais da época tornaram-se gradualmente líquidas, levando os cidadãos cada vez mais à situação de barbárie, gerando guerras por igualdade, comida, espaço e melhoras de vida. Dessa forma, as relações pessoais são abaladas e, muitas vezes, pertencer ou não à um lado definido da revolução definia que tipo de ser se era naquela sociedade em que o seu status era uma forma de expressar se sua vida seria farta ou se viveria na pobreza, uma vez que tudo baseava-se em três posições: nobreza, clero e o povo.

“Verdade ou não, o que se diz a respeito dos homens ocupa muitas vezes em sua vida, e sobretudo em seu destino, um lugar tão importante quanto aquilo que fizemos.”

O detalhismo nas descrições presentes na obra demonstra o quanto se há agregado financeiramente em cada parcela da população, retratando, de forma explícita, o contraste entre a miséria dos cidadãos e a riqueza ostensiva do império. Assim, uma característica forte na linguagem é a adjetivação, nunca exagerada, mas simbólica. No entanto, apesar de se tratar de uma obra de época, a escrita é de fácil acompanhamento e chega a ser leve, por apresentar rebuscamento na medida certa, o que é visível no trabalho impecável de tradução de Regina Célia de Oliveira ao tornar a obra o mais acessível possível no quesito de entendimento.

A obra inicia-se na “Primeira Parte”, a qual chama-se “Fantine”. Retratando em primeira mão os privilégios concedidos à igreja na época, estruturam-se na mente do leitor diversos motivos iniciais e, por hora, ainda singelos, para que haja um gosto de Revolução. Assim, pode-se notar a questão da corrupção do papado como muito presente nesse momento, por haver diversas divergências frente ao dinheiro requisitado para os orçamentos da instituição. Porém, entende-se que a mesma transforma-se em uma mediadora entre ricos e pobres, nas transações e transferências de dinheiro.

Tratando-se da questão dos privilégios, a nobreza é retratada como aquela que passa de forma hereditária seus títulos e regalias adiante, dessa forma, a morte de um indivíduo representava, em sua totalidade, o sucesso de outro e, portanto, a sociedade institucionaliza este tipo de barbárie.

“Que costas largas tem a morte! Que admirável carga de títulos fazem-na alegremente carregar, e que grande habilidade têm os homens para fazerem do túmulo instrumento da vaidade!”

É perceptível que a igreja não só dita como, também, é a lei, lei essa que, independente do crime, materializava-se quase que totalmente na imagem da guilhotina.

Aos poucos nota-se que personagens referem-se à pensamentos de filósofos específicos, aqueles muito citados em livros de história na construção de um iluminismo, na busca da libertação do homem e do prazer, além do questionamento frente aos dogmas conservadores e cristãos e cada vez mais esses pensamentos atingem as massas, movimentando um burburinho que viria a tornar-se a grande e memorável Revolução Francesa. Dessa forma, são exaltadas figuras como Voltaire e Epicuro; além da prática do mecenato – financiamento de artistas iluministas por burgueses.

A obra se inicia com uma análise não muito explícita da época da Revolução. Acompanhando a vida do bispo de Digne que se atreve a filosofar em uma França não mais tão conservadora como antes, pode-se remontar os eventos que constituíram a luta por direitos do ser humano como cidadão. O bispo demonstra pensamentos de proximidade com os pobre e acha indigno da igreja manter uma ostentação enquanto os fieis viviam em meio à um ambiente insalubre e alastrado pela fome.

Tal análise monta na mente do leitor a ideia de um quadro, como se a obra em si fosse uma novela baseada no famoso e aclamado “Liberdade guiando o povo” de Eugène Delacroix (1830). Aliás, personagens presentes no longa-metragem correspondente à obra são sem dúvidas caricaturados como os personagens exibidos na tela de Delacroix, um exemplo é o cativante moleque Gavroche.

“Os Miseráveis” é, em disparada, uma obra à frente de seu tempo, por humanizar as instituições, e, principalmente, as relações entre as pessoas. Quebra, então, com tradições mecânicas próprias de um sistema monárquico e de uma sociedade extremamente hierarquizada. O enredo é bem amarrado e todo conectado, dessa forma, apenas um musical foi capaz de reproduzi-lo com magnitude e maestria. Abrir-se a ideias filosóficas e conceitos científicos foi uma atitude explicita de Victor Hugo, como no trecho a seguir:

“Refletia sobre esses magníficos encontros de átomos que dão forma à matéria, revelam as forças ao constatá-las, criam as individualidades na unidade, as proporções na extensão, o inumerável no infinito e, por meio da luz, produzem beleza. Esses encontros se enlaçam e se desenlaçam sem cessar, daí resultando a vida e a morte.”

À medida que a trama principal vai tomando forma, é notável que a justiça é feita por meio do isolamento de toda a cidade. Dessa forma, o indivíduo é expulso de qualquer ciclo social e vínculo humano, reduzindo-o a um condenado. Essa é a situação do desconhecido que adentra Digne, mas que vê sua história definindo sua vida e rebaixando-o à estadia de uma casinha de cachorro, da qual é expulso pelo próprio animal.

Há momentos em que a natureza parece hostil.”

O destino do condenado não era bem certo, porém é com esse início que se declara que o primeiro passo para tentar sair da situação de miséria é reconhecer-se como miserável. A injustiça frente ao desconhecido que se declara como Jean Valjean apresenta a sociedade hierárquica e aristocrática.

Assim, Jean Valjean sai de cena abrindo espaço para a cidade de Montreuil-sur-Mer que, com a bondade de Pai Madeleine, pôde prosperar. Esse é o ponto de partida para que Fantine seja apresentada. A jovem que engravidara e fora deixada pelo pai da criança, busca ganhar a vida para mandar dinheiro para a pequenina Cosette, sua filha deixada sob os cuidados dos Thérnardier.

Fantine encontra um bom emprego na fábrica de Pai Madeleine, onde vê seu futuro estável. Porém, ao perder o mesmo, pela vontade de outros de diminuir o ser humano, começa a ter uma vida similar à de um condenado como Jean Valjean. Com essa perda, Fantine rebaixou-se cada vez mais, perdendo tudo: os cabelos, os dentes, o corpo, a vida. A justiça machista da vida de Fantine a condenou pelo fato de o pai de Cosette, um homem de dinheiro, não haver permanecido ao seu lado e decidido buscar maiores ambições. As relações se estabelecem de acordo com o poder envolvido e o amor é dado como algo errado.

“O amor é um delírio; muito bem Fantine era a inocência boiando sobre o delírio.”

Cosette não só foi criada por outro casal, como foi criada de outro casal. Assim como no conto “Cinderela” a pequena Cosette fora maltratada pelos ricos que lhes deram o lar e pelas duas irmãs postiças; como se nascer pobre fosse considerado, por si só, um crime grave.

A obra dá detalhes políticos, o que situa o leitor no tempo histórico e o faz entender como se dão as relações e como elas são afetadas pelos problemas recentes propagados pelo imperador Napoleão Bonaparte.

Neste livro, todas as histórias se entrelaçam e casam perfeitamente assim como em um musical e isso torna cada iminência de uma nova descoberta na trama, uma experiência sempre muito tensa. Além disso, tudo é geograficamente disposto, de forma que um mapa é formado na mente do leitor, fazendo-o entender mais sobre a França do século 19.

Algo muito claro na cultura do século relatado é a facilidade em se condenar um pobre à um destino mais pobre ainda, o que é semelhante à naturalização do crime dos ricos. E é assim que Fantine é apenas o início do sofrimento de Cosette.

Com uma aula de história intensa acompanhando todo o enredo e, às vezes, uma descrição excessiva dos fatos reais, alguns momentos breves tornam-se monótonos, como a Batalha de Waterloo. Porém, com esses fatos sendo apresentados, a história toma rumos inesperados e junta personagens que o leitor nunca imagina que passariam pelo mesmo caminho.

Quando Fantine e Pai Madeleine se reencontram, o homem nota que foi a fonte do sofrimento da mulher doente e assume a responsabilidade de corrigir seus erros. Apesar do destino da mulher e do que seria do condenado Jean Valjean, Pai Madeleine entende que deve buscar a menina Cosette.

Assim inicia-se a segunda parte do livro, que busca tratar da vida da pequena que trabalhava na taverna dos Thérnardier. Em um dia, um homem misterioso adentra a taverna e afeiçoa-se pela menina. Ele vê que seus guardiões tratam-na como serva e que o homem, quando recebe a oportunidade de ser mau para se sobressair, ele geralmente agarra essa oportunidade.

Com o andar da narrativa, percebe-se que o dialogo entre narrador e leitor torna-se constante. A consciência do narrador toma conta da obra e mostra-se nada observador, dessa forma devaneios sobre o homem e a sua sociologia são situações que imergem em reflexões profundas a partir da página 557 acerca da corrupção, da moral, da índole do homem e de seus preconceitos; além de abrir espaço para a ciência ainda incipiente que aturdia as discussões da época.

“Superstições, beatice, carolice, preconceitos, todas essas larvas, por mais larvas que sejam, têm apego à vida; têm dentes e unhas em sua fumaça, e é necessário constrangê-las corpo a corpo.”

Assim, é claro para o leitor que Victor Hugo é transcendental, por ir muito à frente de seu tempo e por em prática, no século 19, debates que ainda não foram resolvidos na atualidade. Seu livro, apesar se ser antigo, não possui grandes traços de preconceitos generalizados como a maioria das obras da mesma época; justamente por pregar a liberdade, igualdade e fraternidade características da Revolução Francesa. A forma como Victor Hugo se expressa é poética, permeada de metáforas encantadoras e harmonicamente musicais.

“Pensar no prolongamento das coisas defuntas e no governo dos homens por embalsamamento, restaurar os dogmas em mau estado, tornar a dourar a caixa de relíquias, renovas os claustros tornar a benzer os relicários, reviver superstições, reabastecer o fanatismo […], impor o passado ao presente, tudo isso parece estranho. No entanto, há teóricos para essas teorias.”

A terceira parte do livro mostra que, não importa o foco da narrativa, as histórias rodeiam, de alguma forma, a vida –– ou os arredores desta – de Jean Valjean e, consequentemente, de Cosette. Dessa forma, a parte que trata de Marius, começa com uma análise da criança pobre e de Paris, como forma de mostrar que – apesar de encontrar-se em situação de miséria – é possível dar carinho e amor para essa criança e recuperá-la, poupando-a de um destino parecido com o de Fantine.

Essa foi a situação de Cosette e do homem que adentra o bar dos Thérnardier, que, há tempos, estava perdido, sem encontrar o próprio destino. Entrelaçando-se com toda a trama, surge Marius, que permite novamente a conexão entre a família que maltratou a pequena Cosette – ou Cotovia, como a chamavam – e o homem que seria prometido à ela. Em meio à uma atmosfera revolucionária própria da Revolução Francesa, poderia o menino pobre analisado que encontrou acolhimento nos braços da burguesia parisiense rebelar-se e virar as costas para tudo que conquistou? Poderia ele recusar tudo que lhe foi oferecido e se entregar ao sonho da república francesa? Ou seria essa uma atitude demasiada audaciosa e que lhe traria um cruel fim, honrando a sua alma miserável, a alma miserável do menino na cidade de Paris?

“Marius tinha os olhos pequenos, mas o olhar grande.”

O jovem disposto a abrir mão de suas riquezas pelo amor à Revolução e admiração ao pai vê-se rodeado de miséria, trapos, pobreza. Apesar do quão devastada poderia ser a vida de um pobre, ainda havia amor para se acender e aquecê-los, enquanto fosse alimentado.

Além disso, percebe-se, desde o início da obra, que a justiça é tratada de forma bem delicada na época. O rebuliço dos direitos humanos na França ainda era incipiente e a máxima “olho por olho, dente por dente” ainda era honrada no antigo país. Dessa forma, personagens icônicos aparecem durante toda trama para deixar claro que histórias mal acabadas buscam desfecho em um lugar em que os cidadãos podem usufruir da lei de acordo com seu status, sua condição social e sua posição frente o poder.

A ambientação do leitor no tempo histórico prolonga-se durante a obra. A revolução permanece estremecendo as relações pessoais e tornando o pobre cada vez mais miserável, porém esperançoso. A quarta parte foca, inicialmente, na parte histórica e pouco aprofunda o enredo das personagens, com exceção de Cosette que ganha atenção pela sua vida amorosa a qual começa a florear com aparições de Marius, apesar do caráter muito platônico desta paixão.

Indo além, pode-se dizer que Victor Hugo brinca com as identidades. Quantas identidades uma mesma pessoa pode assumir para se esconder dos outros, de si mesmo e da sua fé? Quantas identidades são necessárias para encobrir os segredos e justificar a bondade? Quantas identidades podem ser usadas para buscar uma justiça mais humana na França revolucionária? O autor parece jogar com essas questões durante toda a trama e desperta no leitor um sentimento de ansiedade e desconfiança, no qual o mesmo se pergunta: “Será que esta personagem é mesmo quem diz ser? Ou será alguém a quem já fomos apresentados ao longo da história?”. É notável que o leitor é testado a cada momento do livro e qualquer descaso com parte da obra, pode causa um abismo no entendimento do indivíduo.

“O crepúsculo começava a clarear o que ficava no alto e a escurecer o que ficava embaixo.”

A ironia do autor permite uma fluidez mais constante na obra se comparado a autores da mesma época. Questões como a busca pela revolução e a ascensão de ideias iluministas, muitas vezes, quebraram com a regra, com a métrica e com a forma sistemática de se escrever. Dessa forma, Victor Hugo transformou o campo literário de forma revolucionária e seu livro faz jus à época que procura retratar até mesmo na sua forma de escrever e expressar os acontecimentos. O escritor é poético, mas foge do convencional, foge da rima, foge da estética, sua prosa em si é poética, mas não segue padrões, assim, assemelha-se demasiadamente da poesia contemporânea; a quebra de expectativas é constante e isso torna a leitura extremamente prazeirosa.

Dessa maneira, a leitura é contínua e quando se percebe, o leitor já se encontra por volta da página novecentos quase que naturalmente. Além de se encontrar com esferas da história nunca relatadas em livros didáticos – como o ponto de vista do pobre e miserável –, o leitor tende a se reparar com um dos enredos mais harmonicamente construídos – e desconstruídos – de todos os tempos, uma característica crescente na literatura juvenil dos tempos atuais.

“A noite tinha aquela serenidade que acalma as dores do homem, não se sabe sob qual lúgubre e eterna alegria; e prometia ser tão árida quanto havia sido o dia.”

Além da forma como o autor colocou as palavras, é preciso reconhecer dignamente o trabalho impecável de tradução nesta edição da obra. Regina Célia de Oliveira tornou a linguagem desta obra em algo extremamente leve e acessível. A tradutora propôs um trabalho em que a história se mostra pouco cansativo, apesar das 1509 páginas que a compõem.

A edição em questão, da editora Martin Claret permite olhar para Victor Hugo com novos olhos. O volume único da obra já não se encontrava à venda há tempos, até que a editora expõe uma edição perfeita para os colecionadores e, principalmente, para os que encontravam-se com receio de ler a obra e cair no desgosto e no tédio. Isso torna-se quase impossível nesta edição. Além da capa excepcionalmente maravilhosa, a diagramação das páginas é tão harmoniosa que não cansa a vista do leitor, que – dependendo da determinação– pode chegar até a mais de 100 páginas por dia.

A obra geralmente encontra-se na lista de “sonhos de consumo literário” de quase todo amante de livros e de literatura clássica. Pode-se afirmar que isso tornou-se mais fácil. A obra, que por muitos anos foi esquecida e deixada de lado, volta à tona e com a mesma força da época na qual foi publicada. É incrível perceber como Victor Hugo ainda faz sentido, ainda se faz entender – de certa forma, até frustrante, pelo caráter mais sombrio de partes da obra– e é surpreendente como esta história pode dar ao leitor um impulso para buscar diversas mudanças no mundo e em si mesmo.

Entre diversos devaneios acerca da constituição da sociedade da época, a obra traz relatos dos avanços científicos. É interessante observar que a química, a física e a biologia já eram crescentes por volta de 1862 – ano de publicação. Assim, certas frases podem confundir o leitor no espaço temporal, pois, apesar de este ser o ano de publicação da obra, o enredo rodeia um tempo ainda anterior, entre a Batalha de Waterloo e as Revoluções posteriores.

“Quem pode, então, calcular o trajeto de uma molécula? Que sabemos sobre se a criação de mundos não é determinada pela queda de grãos de areia?  Quem é que conhece os fluxos e refluxos recíprocos do infinitamente grande e do infinitamente pequeno, o ecoar das causas nos precipícios do ser, e as avalanches da criação? […] Onde termina o telescópio começa o microscópio.”

São muitas as passagens do livro que arrancam suspiros e reflexões do leitor. A forma como Victor Hugo destaca a vida e a sua maneira de enxergar o mundo, os conhecimentos, a ciência, a humanidade, os sentimentos, a existência, a essência, o coletivismo e o individualismo pode ser – e pode ser de forma constante– de tirar o fôlego. São incríveis as citações que poderiam ser expostas para demonstrar tal característica de sua escrita, porém, expô-las demasiadamente seria acabar com a magia que o escritor proporciona ao leitor no seu primeiro contato com a obra.

Um fator interessante de “Os Miseráveis” está nos sentimentos. Apesar das batalhas, da revolução e da pobreza, as pessoas ainda se apaixonavam e fomentavam esse sentimento. Como não havia o advento da internet, as relações era extremamente pessoais e pouco líquidas, porém menos físicas ainda, de maneira que duas pessoas alimentavam uma paixão apenas pelo olhar.

“Nada é mais real que esses grandes abalos que duas almas provocam mutuamente ao trocar tais faíscas.”

Parte quase que integral da análise social proposta no livro remete à seguinte constatação: Um sujeito pode ser pobre, pode não ter dinheiro para morada, para alimento, para manter-se; mas, ainda assim, o sujeito terá a vida, o céu, o chão e a natureza ao seu lado. Seu declarado inimigo – o declarado inimigo do miserável– é a própria sociedade, o próprio ser humano, como se no mendigo se enxergasse toda a parte que a sociedade deseja esconder por não ser aceito e bem visto. No entanto, ele permanece ali.

Dessa maneira, há dois elos do meio que, geralmente, não são abalados pelas convenções sociais: O mendigo e o moleque. A graça da criança faz passar despercebidas as maldades ocasionadas pelas guerras e pelo dinheiro, é assim que o leitor enxerga Gavroche, que tudo observa, mas, muitas vezes, com um inocência capaz de quebrar barreiras. Quem diria que a ignorância poderia trazer força? Assim que há o contato com a parte da sociedade apta a moldá-lo, ocorre uma doutrinação capaz de limitá-lo.

Apesar de ser uma obra demasiada moderna para o seu tempo, ainda se encontra traços de conservadorismo em partes da história em questão. A presença constante do escravismo institucionaliza o racismo no país e demonstra expressões que remetem ao tratamento entre senhores e – expressões similares à algumas encontradas no Brasil ainda hoje. E é dessa maneira que o conservadorismo começa a ser plantado na vida de Gavroche desde cedo, pelas convenções sociais racistas.

“Não quer ser operário será escravo. O trabalho só nos solta de um lado para depois nos prender pelo outro; não quer ser seu amigo, será seu negro.”

O moleque atentamente recebeu esta informação e, com a malandragem de um menino das ruas, voltou a vadiar, afinal, a França revolucionária pregava a liberdade do homem. O autor parece demonstrar que a tendência seria se soltar dessas amarras do passado que não proporcionavam a igualdade e a fraternidade que era buscada na revolução.

“Marius era desses temperamentos que se afundam na mágoa e aí permanecem; Cosette era dos que nela mergulham e dela logo saem.”

O platonismo da paixão proibida dos dois injustiçados alimenta no leitor o sentimento forte de esperança. Apesar de todas as coincidências e todas as adversidades, de alguma forma, eles continuavam a se esbarrar – com os Thérnardier, com Jean Valjean, com o jardim. Mesmo tendo em sua história todos os miseráveis, que já foram apresentados anteriormente, tentando separá-los por benefício próprio, mesmo na vastidão da França, eles encontram o caminho um do outro.

À medida que Cosette adquire sua maturidade, a forma como ela se energia se transforma completamente. A pequena Cotovia que acreditava ser a irmã feia da família Thérnardier, aprende a se olhar no espelho e ver a si mesma com outros olhos, enxerga a beleza que tem; além disso, aprende que não necessita estar todo o tempo ao lado de seu pai, apesar da bondade do home ela é uma mulher livre e, sobretudo, aprende que tem força interior, que é muito mais do diziam que ela era.

“Se bem se recordam, ela era mais cotovia que pomba. Tinha um fundo selvagem e bravio”

Diversas ideias são discutidas ao longo da trama, principalmente ao se aproximar do final do livro. A questão social e material se esbarram antes mesmo de haver algum indício em relação a capitalismo e socialismo, o poder do coletivo para realizar mudanças permanece em jogo, o intelectualismo – ao lado do iluminismo –, o futuro da humanidade e, em especial, da sociedade francesa que sofre com a nobreza abusiva e seus burgueses individualistas, enquanto que o rico buscar tornar-se mais rico e o pobre, sem outra opção, torna-se, quase que diretamente, mais pobre.

A interlocução muitas vezes tira o leitor do segundo plano, é divertido ver como Victor Hugo se põe a conversar com quem lê sua obra, além de fazer um resumo da história previamente contada para que essa não caia em esquecimento no meio de tantos fatos históricos e aprendizados sobre a cultura francesa ao longo do caminho.

“O amor não tem meio-termo; ou perde ou salva. Todo o destino humano está nesse dilema. Tal dilema, perda ou salvação, nenhuma outra fatalidade o coloca mais inexoravelmente que o amor. O amor é a vida, se não for a morte. É berço; também é túmulo. O mesmo  sentimento diz sim e não dentro do coração humano. De todas as coisas que Deus criou, o coração humano é a que desprende mais luz, ai! E mais escuridão.”

É com esse trecho que o autor começa a dar mais atenção à paixão entre Cosette e Marius, inocente e no princípio para tornar-se desbravadora, uma contradição que por fim, escolheria a opção de ser o extremo bom: o que salva. A adoração de um pelo outro era tanta que relembra os tempos do romantismo exacerbado, o qual acompanhava a idealização da mulher amada. O amor deles era estonteante e Victor Hugo não dispensou metáforas e metáforas para descrevê-lo, comparações com o universo, perfumes de flores, luz, estrelas e todas as formas possíveis de explicar que Cosette e Marius se idolatravam.

“O universo em volta deles caíra em um buraco. Viviam em um minuto de ouro. Como se nada houvesse à frente, nem atrás.”

No entanto, à volta deles havia uma pessoa que buscava acabar com toda a felicidade dos dois. Éponine, a filha de Thérnardie que fora expulsa de seu lar, após anos de maus tratos com Cosette. Éponine encontrou-se pobre e apaixonada pelo homem que só tinha olhos para a pequena Cotovia.

Dessa forma, o desespero deles que muito se parecia com o desespero de Romeu e Julieta tomou conta do romance. Com Jean Valjean e Éponine em seu caminho, que fariam os dois amantes? Um dia sequer sem poderem se ver já se tornava uma tortura para Cosette. Ao mesmo tempo, a própria revolução parece separá-los e deixar o destino de um cada vez menos próximo do destino do outro.

“Há um Deus para esses bêbados que chamamos de apaixonados.”

Com essa adversidade do combate intervindo nos dois apaixonados, Victor Hugo possui uma abertura para explicar o que seria esse motim. Como um grito de esperança dos pobres e injustiçados, o motim de 5 de Julho de 1832 foi um estopim. Com a ferida social aberta, o combate estanca e separa cada vez mais Marius e Cosette. As contradições entre as intenções da burguesia e dos camponeses são postas em debates ao lado da então polêmica questão que rodeava a questão do sufrágio universal.

“O motim é uma espécie de tufão da atmosfera social que se forma repentinamente sob certas condições de temperatura e que, em seu rodopio, sobre, corre, estoura, arranca, arrasa, esmaga, derruba, puxa as raízes, arrastando consigo as grandes naturezas bem como as mesquinhas, o homem forte e o espírito fraco, o tronco de árvore e o fragmento de palha.”

Com o fim próximo, a tensão tanto do enredo fictício quanto da parte histórica se intensifica. O rebuliço do embate se torna mais alto e é possível perceber que os personagens encontram-se numa irritação e num estresse mais constantemente. Gavroche consegue ver que ele vai sendo deletado dos meios sociais enquanto decide ser um vadio e que, na França revolucionário, o malandro não tinha grande espaço, mesmo ao lado da luta por “Liberdade, Igualdade e Fraternidade”, pois quem não estava ao lado da revolução, era classificado como alguém que estava “contra a revolução”.

A trama toda é acompanhada de poesias das próprias personagens. As poesias mostram seus sentimentos perante o amor e perante o caos que se tornou Paris, onde se centraliza a história a partir do meio do livro. Apesar de, ao ser traduzida do francês para o português, provavelmente perder alguma musicalidade característica da pronúncia da língua original, a tradução para o português permanece com sua essência harmônica e remete, diversas vezes, o longa-metragem do musical, estrelado por Anne Hathaway, Amanda Seyfried, Hugh Jackman, Eddie Redmayne, além de outros atores com nome de peso que conseguem retratar estes personagens complexos de maneira que casam perfeitamente com a essência de cada um.

Gavroche é o exemplo claro de que as crianças podem se empolgar com qualquer inquietação e que, ainda com pouca idade, podem ter grande entendimento sobre os acontecimentos em seu país como qualquer adulto, como seus direitos e o que deve fazer para auxiliar. A maturidade o alcança depressa, pois foi necessário.

Já Marius demonstra o que um amor inalcançável e a sede por rebelião podem fazer com um homem, trazendo ódio ao seu olhar e o fazendo segurar uma arma, pronto para adentrar no combate e fazer parte daquela que seria ou uma vitória ou uma escaramuça. Pessoas da vida de Marius adentram o seu pensamento com força antes que ele se entregue. Quantas vidas valiam a França naquele momento?

“É preciso derrubá-la. É preciso destruir essa massa monstruosa. Vencer em Austerlitz é grande, tomar a Bastilha é imenso.”

Os momentos referentes à batalha mexem na estrutura das personagens, assim como na coragem dos homens e na importância desta batalha, o que a Revolução representa, assim como o hasteamento da bandeira e quem o fará. O pequeno Gavroche foi o único bravo a não abandonar o seu posto, com toda a inocência e coragem de uma criança em seu lado, teve a força de segurar o fuzil de Javert e entregar o seu coração àquilo que acreditava, suas convicções e sua fé na Revolução.

“Uma batalha, como a que estamos narrando neste momento, nada mais é do que uma convulsão em direção ao ideal.”

Talvez seja a culpa ou a vingança que levou Jean Valjean para o campo de batalha, onde encara Javert, seu antigo inimigo, e Marius, o homem que ama a sua filha desesperadamente filha a qual Jean Valjean tem um profundo ciúmes por ser ela a razão de sua salvação na vida física e espiritual. Jean Valjean, apesar de ser um condenado, buscou melhor desde o seu encontro com o bispo de Digne, e Cosette veio ao seu caminho.

A obra muitas vezes lembra uma colcha de retalhos. Diversos enredos paralelos são enunciados pelo autor de forma quase que alternada. Séries de coincidências uniram esses enredos, transformando a história de todos em uma única história. O encontro destes enredos se materializa no campo de batalha com o encontro dessas três figuras icônicas: Jean Valjean, Javert e Marius Pontmercy.

A tensão permanece e intensifica-se quando o leitor se depara com a morte de uma personagem ao qual, geralmente, as pessoas se apegam pelo seu determinismo. O simbolismo da morte desta personagem é tanto que gera debates fervorosos, por remeter à morte da infância em prol do caráter de revolucionário e deixar claro que o Estado Francês mataria até uma criança para não deixar que o povo ganhasse.

“Não sou escrivão,

A culpa é de Voltaire,

Sou um pequeno pássaro,

A culpa é de Rousseau

Alegria é meu caráter,

A culpa é de Voltaire,

Miséria é meu enxoval,

A culpa é de Rosseau

Caí no chão,

A culpa é de Voltaire,

O nariz na valeta,

A culpa é de…”

Esses versos acompanham os últimos momentos de vida desta personagem cativante. A poesia cantada em questão é simbólica uma vez que Rousseau e Voltaire foram filósofos iluministas que trabalharam a liberdade e a vida do homem enquanto cidadão, importante para a constituição dos direitos dos cidadãos –produto da Revolução. Culpá-los é uma forma de simplesmente dizer que a personagem se entregou com devoção aos seus ideias e morreu em prol deles.

“Não era uma criança, não era um homem; era um estranho moleque encantado”.

O que se espera encontrar na manhã seguinte ao combate? Destruição e tristeza para os miseráveis ou vitória para os injustiçados? Independente dos resultados, a batalha faz o ser humano questionar-se para onde foi a humanidade e como que a vida de um homem é reduzida a um combate armado.

“Assim são as coisas. Nós nos sacrificamos por essas visões que, para os sacrificados, são quase sempre ilusões, mas ilusões às quais, em suma, toda a certeza humana se confunde. O insurgente poetiza e doura a insurreição. Arremessa-se no meio dessas coisas trágicas embriagando-se com o que vai fazer.”

Em meio a justiças e injustiças, acaso e desencontros; Victor Hugo faz questionar o certo e o errado em todas as esferas que decide abordar: amor, sociedade, governo, igualdade, justiça, vida. Se a vida de Marius é poupada e o amor dele é libertado, esse é um fechamento que deve ser buscado pelo leitor na própria obra, mas permite-se dizer que há muito mais que isso para ser dito pelo autor em suas metáforas que são de apaixonar os amantes por literatura clássica.

A obra é incrível e de tirar o fôlego. Nas últimas 200 páginas a ansiedade que o leitor provavelmente irá sentir ao terminar o livro será grande, mas é importante manter a atenção pois acontecimentos de peso estarão para acontecer, envolvendo as mesmas figuras que aparecem ao longo do livro inteiro: Jean Valjean, Marius, Javert e Cosette. A sensação dos últimos momentos assemelha-se à expressão “coração na boca”. Não se pode nega que o leitor pode sentir até certa angústia. Apesar da montanha russa emocional causada por Os Miseráveis, este clássico não perde, nem por um segundo sequer, sua maestria.

“Morrer não é nada; horrível é não viver.”

Natalia Gulias

Uma vestibulanda de medicina de 17 anos usa seu curto tempo livre para ler bastante e descansar da pesada rotina de estudante.
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