RESENHA | ‘Toda luz que não podemos ver’ enfoca a realidade a partir da perversidade, da bondade e da delicadeza que constituem vida
Gabby Soares
|10 de maio de 2017
Em Toda luz que não podemos ver, romance de Anthony Doerr vencedor do Pulitzer de ficção em 2015, seguimos as histórias de Marie-Laure e Werner, de crianças até o momento em que suas vidas se aproximam na cidade litorânea francesa de Saint-Malo. Em uma dinâmica que joga com destino e acaso, magia e ciência, beleza e feiura, coragem e covardia, bondade e maldade, é possível ver como a Segunda Guerra Mundial influenciou cada aspecto da vida das pessoas, como as uniu de forma imperceptível e ainda indestrutível e como aflorou aquilo que era inato em cada um.
Marie-Laure é uma garota curiosa e imaginativa e que ama seu pai mais que tudo assim como é amada por ele. O sr. LeBlanc constrói maquetes para que a filha consiga se movimentar pelo próprio bairro após perder a visão por causa de uma doença degenerativa. Eles vivem em Paris, onde o pai de Marie-Laure trabalha como chaveiro no Museu de História Natural e onde recebe a tarefa de esconder um possível diamante raro e mítico das mãos dos alemães durante a guerra ao mesmo tempo que tenta proteger sua filha dos horrores que acompanham o conflito na Europa.
Simultaneamente, na periferia alemã, Werner é um garoto órfão vivendo com sua irmã Juta em um orfanato, após a morte de seu pai em uma mina de escavação. Werner é inteligente, curioso e talentoso, mas tem poucas oportunidades para aprender e exercitar seu conhecimento, contando apenas com um programa de rádio antigo dedicado a explicar ciência às crianças. Quando a guerra começa e todos os jovens alemães são convocados como os futuros soldados de Hitler, a vida de Werner muda e, ao invés de noites ouvindo rádio e conversando com Juta, ele agora tem dias de um treinamento cruel e distorcido.
A partir de uma narrativa dinâmica e capítulos curtos com descrições e inserções de tempo e espaço exemplares, Doerr constrói uma história da qual não se consegue ser indiferente. Um narrador onisciente em terceira pessoa é quem conta a vida de Marie-Laure e de Werner a cada capítulo, intercalando entre os tempos antes e durante a guerra até o momento em que suas vidas se encontram em perigo em Saint Malo. O estilo da escrita e a utilização do discurso indireto livre possibilitam uma aproximação e envolvimento com os personagens singular desde o início do livro.
Apesar da técnica literária bem utilizada e manipulada contribuir para a experiência sensorial, emocional e reflexiva que consiste em ler ‘Toda luz que não podemos ver’, é a forma como o assunto é tratado e retratado e, consequentemente, como nos faz o experimentar na obra que o diferencia. A Segunda Guerra Mundial é um assunto comum na maioria das formas de expressão artísticas e culturais e suas abordagens são das mais diferenciadas possíveis e, apesar da escolhida nesse livro não ser uma novidade, é a forma como ela é realizada com maestria que faz desse livro um banquete literário. Ao trazer o olhar de duas crianças/adolescentes que se encontram em situações e posições diferentes no e graças ao conflito, assuntos densos e extremamente complexos passam a ter diferentes perspectivas exploradas. A profundidade e extensão de cada decisão, ação ou a falta de tais são, assim, expostas e tornam-se palpáveis através de uma delicadeza inesperada e particular.
A narrativa sensível e detalhista de Doerr expõe como as coisas que mais importavam para ambos os personagens em suas tenras idade e inocência eram as mais simples e frágeis. Sejam as fórmulas matemática, as complexidades tecnológicas do rádio, o convívio com a irmã ou com o amigo Frederick, que eram tão importantes para Werner ou as aventuras que Marie-Laure encontrava em seus livros e as emoções de estar junto com seu pai, ao tio-avô Etiénne e a Madame Manec tudo pode ser interrompido ou colado em risco pelos indícios e ações de uma guerra definida pela ignorância do mundo adulto.
Como consequência, é possível observar como a infância é roubada deles cedo demais e de uma forma muito cruel. A transição entre a valorização das coisas mais simples e os perigos e terror eminente que acompanharam a Segunda Guerra passa a transmitir as urgências, incertezas e medos que tomam todos os aspectos da vida dos personagens. E nesse momento é preciso admirar as escolhas de enredo de ‘Toda luz que não podemos ver’.
Marie-Laure ser uma deficiente visual faz com que ela seja a principal fonte da sensibilidade que permeia todo o livro. A forma como ela e seu pai lidam com sua condição e, principalmente, como ela percebe o mundo é um dos elementos que deixam a narrativa ainda mais rica e uma forma direta de nos mostrar que os detalhes são de extrema importância. Assim, a escolha de Werner ser um menino alemão que não entende o porquê da guerra ou esteja em uma posição de questionar a forma como as coisas são, mas que ainda assim seja curioso, desejoso de aprender, faz com que ele seja a principal fonte da frustração e desastre que a guerra trouxe para a vida das pessoas, de crianças que poderiam ter sido inúmeras coisas diferentes, como o cientista que Werner desejava ser ao ouvir o rádio com sua irmã, como é claro no trecho abaixo:
“Para Werner, as dúvidas surgem regularmente. Pureza racial, pureza política – Bastian fala com horror de qualquer tipo de corrupção. No entanto, medita Werner, na calada da noite, a vida não é uma espécie de corrupção? Uma criança nasce, e o mundo se apossa dela. Arrancando coisas dela, alojando coisas nela. Cada porção de comida, cada partícula de luz entrando no olho – o corpo nunca pode ser puro. Mas é nisso que o comandante insiste, o motivo pelo qual o Reich mede o nariz de cada um deles, avalia a cor de seus cabelos”.
Ao mesmo tempo que eles são similares também são diferentes. Ainda que de maneiras e intensidades diferentes, suas infâncias, mentes e integridades foram reprimidas graças a coisas das quais eles tinham pouco ou nenhum controle. Uma francesa, um alemão; uma deficiente visual, um recruta do exército; uma que teve o seu país ocupado e um que faz parte do grupo ocupante; ambos devastados, de muitas formas impotentes, mas ainda gentis e desejosos de uma realidade diferente, melhor. Assim, Anthony Doerr expõe a fragilidade e a importância da vida e de tudo aquilo que nos é querido assim como o impacto e representação de nossas escolhas e coragem na vida dos outros e o potencial que pode ser extinguido ou proporcionado por cada ação que realizamos.
FICHA TÉCNICA
PESO | 0.695 Kg |
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CÓD. BARRAS | 9788580576979 |
NÚMERO DA EDIÇÃO | 1 |
IDIOMA | Português |
ANO DA EDIÇÃO | 2015 |
PRODUTO SOB ENCOMENDA | Sim |
MARCA | Intrinseca |
I.S.B.N. | 9788580576979 |
ALTURA | 23.00 cm |
LARGURA | 16.00 cm |
PROFUNDIDADE | 2.50 cm |
NÚMERO DE PÁGINAS | 528 |
ACABAMENTO | Brochura |