Saída de Serviço

Demétrius Carvalho

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19 de novembro de 2014

Eu sempre achei irônico entrar no trabalho pela saída de serviço, mas sair pela entrada. Era quase bíblico para mim. Os últimos serão os primeiros, mas em se tratando de um cabaret, eu tinha que me conter com a piada. Ou ela descambava para o surreal e escárnio ultrajante, ou era muito mal recebido e eu sendo visto como a pessoa mais herege da face da terra.

A questão é que quase todo dia eu chegava ali por volta de 22:20h, me maquiava e colocava-me a disposição daquele bando de ogro. Vez por outra era razoável e quando já era razoável, era bom, afinal de contas, normalmente era muito ruim. Eu tinha uma certa paciência quando chegava uns frangotes mais nervosos do que motoristas fazendo prova de baliza. Gagos e trêmulos, da uma vontade de tirar onda com eles, mas querendo ou não, sei que é um momento que não vão esquecer. Podem até esquecer o meu nome, até por eu não falar o meu nome real, mas eu no final das contas, tento ajudar, tem vida ali dentro.

Fora isso? Fácil chegar uns rudes, bêbados, violentos e eu mesma já apanhei por duas vezes, mas os seguranças aqui também não são nem um pouco carinhosos com essa estirpe. E aqueles que deixam a desejar na higiene pessoal? Ninguém merece, por isso que quando entra uma pessoa como o Carlos, tudo muda. Educado, gentil e cheiroso e eu me lembraria dele normalmente por uns 10 dias, não fosse pelo fato de que ele passou a vir aqui constantemente. Eu já percebia inclusive que era entre 7 a 12 dias. Quando era mais, eu já começava a ficar ansiosa e teve uma vez que ele passou mais de um mês sem aparecer por aqui. Eu já estava começando a achar que ele não voltaria mais, até que ele finalmente apareceu.

– Esqueceu de mim lindo?
– De jeito nenhum. Lembrei de você por várias vezes e cheguei de viagem ontem. Confesso que pensei em vir direto para te ver, mas estava realmente cansado. Viagem longa. Não havia vôo direto, para cá e lá vai eu de Berlin para os Estados Unidos para conexão.
– Certo. tá perdoado.

Aquela noite foi como se fossem um para o outro. Até mesmo por que conheciam a dinâmica dos corpos de cada um e tinham desejo e saudade não de um corpo, mas daquele especificamente.

Quando Carlos se ia, não só a noite tornava-se mais tediosa, como os próximos dias eram mais chatos, mas dessa vez ele apareceu pelo segundo dia consecutivo e assim, nem fui trabalhar no terceiro, mas no quarto dia, ele disse que havia visto me ver no terceiro dia e foi-se embora por não ter me encontrado.

– E por que não pegou outra garota? Tem cada uma aqui que não sentiria falta alguma de mim.
– Eu não venho por garotas. Posso ter vindo na primeira vez, mas venho por você.

Lembrei dos frangotes gagos e trêmulos por que foi assim que me senti e quase confessei que não conseguia mais pensar nele. Mantive a pose e recebi normalmente no fim. Se eu confessasse ou abrisse mão do pagamento, era o meu fim.

Quando chegou nas outras férias, ele pelo menos me avisou que viajaria de férias e resolvi tirar férias também. Fui para a Argentina e “paguei de santa” por lá, mas experimentei dos sabores portenhos até que finalmente voltei a trabalhar. Ele apareceu 3 dias depois.

– Me procurou antes?
– Como assim?
– Tirei férias também e voltei quinta.
– Se tivesse dito, eu levava você nas minhas férias
– Sou profissional (falei sentindo um gelo subir pelas minhas costas)
– E quem disse que eu não pago?

Na terceira férias desde que nos conhecemos foi assim e lá estava eu “pagando de santa casada” com ele no México. Ele me apresentava como esposa e senti ciúmes certa noite ao notar uma outra olhando para ele e olha que não tinha motivos. Ele sequer olhou para ela.

Voltamos de férias e ele passou uma semana sem aparecer por aqui. A essa altura, eu já tinha o telefone pessoal dele, assim com ele ao meu, mas eu mantinha a pose profissional para não estragar tudo, mas já foi dito por aí que as regras estão aí para serem quebradas e meu coração disparou igual aos frangotes gagos trêmulos quando vi mensagem dele. Era ainda 10:09h da manhã. Ele dizia que havia escrito alguma carta e deixado com o senhor do boteco da rua de trás, afinal ele sabia que eu entrava pela “saída de serviços”. Ansiosa, não consegui esperar até a noite e 14:00h resolvo passar por lá. Isso era completamente diferente de tudo. Em meu mais apaixonado delírio, ele se declararia por mim. Quando enfim pego a carta, ele se declarava de fato.

Querida. São quase dois anos de convivência com você no qual um dia eu realmente procurei uma moça qualquer, mas hoje, só existe você dentro da minha cabeça. Como sei que essa é sua profissão, não suportando mais isso, aceitei um novo emprego no Rio de Janeiro e não te perturbarei mais. Estou indo agora cancelar o meu número. Quem sabe quando eu passar por São Paulo, eu passe por aqui, afinal de contas, talvez seja amor o que sinto.

Baixei a cabeça e a lágrima rolou. Olhei para frente e pensei: passarei em casa, arrumarei o que der, como der e parto para o Rio de Janeiro. Ergui a cabeça e o letreiro “Saida de serviço” definitivamente fez sentido.

Demétrius Carvalho

Demétrius Carvalho é músico, multi-instrumentista e produtor musical de origem, mas anda com frequência em outras artes passando pela literatura, fotografia. Blogueiro, da suas impressões ainda sobre cinema, artes plásticas e definitivamente é multimídia adorando sobrepor arte sobre arte.
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