Ao Seu Lado
Crítica do filme
A projeção começa: vemos uma rua de um bairro do subúrbio brasileiro, estamos a altura de um carro parado a nossa frente, junto a imagem ouvimos uma instigante música. O plano continua estático e a música, aparentemente não diegética, tocando, os letreiros aparecem e nada acontece. De repente a nossa fruição musical é interrompida pela ignição de um carro, que persiste até o motor pegar. Pensamos: a gora o filme vai começar. Quando, porém, o carro liga, a música volta e descobrimos que ela é produzida pelo rádio do deste, quebrando nossa expectativa inicial, pois é uma música diegética. Nossa surpresa não acaba por ai, ao esperarmos ver o automóvel passar, descobrimos que nós fomos colocados no ponto de vista do para-brisas e o andar de carro é o nosso também. A história já tinha começado, nós que não tínhamos nos dado conta.
O fantástico plano inicial, plano sequência, é marcado por uma trilha sonora proveniente de uma rádio que só toca música revolucionária do século passado, com um radialista que evoca a união dos povos latinos. Assim, vamos andando, transformados em carro, pelas ruas de um pobre subúrbio paulista perdidos por caminhos sem saber a onde estamos indo, ou mesmo se chegaremos. A través da montagem em jump-cuts, da imagem acompanhada pelo som, passamos de uma clara tarde ao breu da noite. Nossa rua, de repente, é bloqueada por um transeunte que parece não querer deixar-nos passar, ou por não perceber a nós ou por nos ignorar, lembrando um bêbado em suas lamúrias pessoais, vagando perdido pela noite. Acontece que esse chato que nos impede é o personagem – humano – principal do filme, que a nos ver não é capaz de dizer nada, de agir com respeito, consegue apenas bradar com sua mala, nos ameaçando atacar.
Antes de olharmos para esse personagem, vale atentar para quão metafórico e explanador é esse início. O carro, que carrega a revolução em forma de música, que alcança o status paradoxal na diegese de não diegese, é o primeiro chamariz para a própria metalinguagem do filme, não vazia, mas construtora constante de significado, e a primeira pista sobre o tema que se irá debater: as utopias dogmáticas do século passado, que carregavam a esperança de um mundo melhor. O veículo perdido, metáfora das utopias de esquerda que vagam desencontradas, não podemos saber com certeza se e como chegará ao seu sonho e onde esse será. Em seu caminho ele esbarra no indivíduo, humano em sua corporeidade, carregando desejos, felicidades e sofrimentos pessoais, em um estado de reclusão que o fecha ao outro, que com esse não consegue se comunicar. O homem, pego pelo carro das utopias revolucionárias, em seus egoísmo e lamúria individuais, que não ligou para ele, mal o percebendo e, quando percebe, só incomodado se sente, é representação do indivíduo abandonado a um mundo sem utopias.
Perdido na vida, André (André Gatti), o personagem principal volta para a casa do pai (Carlos Reichenbach, em rara aparição como ator e última, pois veio a falecer logo depois, uma grande perda para cinema nacional) por uns tempos. O motivo? Não importa e parece não ficar claro. A relação entre os dois é marcado pela incomunicabilidade e desajustes, por mais que o filho tente se aproximar do pai, um não consegue ouvir e aceitar o outro. Entre os dois um fantasma se interpõe, o desaparecido irmão daquele e filho deste. André, então, através do resgate de imagens Super-8, captadas e enviadas pelo seu irmão como forma de correspondência de sua viajem para a União Soviética nos anos 70, tenta reavivar a memória de seu Pai, que há 30 anos espera seu filho perdido.
Esse fantasma extremamente forte sobrepõe a história contada e se faz um fantasma sobre o Cinema. Quando André chega e pergunta a seu pai se este havia liberado o quarto no andar de cima, que costumava ficar fechado, para ele, o pai responde que continua fechado e que ele teria que dormir no sofá. Aqui o quarto é alegoria da espera pelo irmão, local em que a memória desse fica preservada. É neste segundo andar, também, que André acha o projetor para os filmes em super-8. O que faz desse pavimento tão especial é que, apesar de nunca o vermos, sabemos que ele está lá, escondido, guardando um fantasma. Porém, há um elemento metalinguístico sutil, quando olhamos a casa por fora, podemos perceber que esse segundo andar é impossível. Ele não tem imageticamente nenhuma possibilidade de existir, o que torna-se a primeira prova perceptível de que o fantasma extrapola a história contada e alcança a forma do filme e o próprio Cinema, já que é lá que os projetores se encontram[1].
O Cinema surge no filme a todo momento, tanto para contar a história, como metalinguisticamente. As imagens em super-8, acervo pesquisado de diversas fontes, surgem na projeção narradas (comentadas) por André, sem uma aparente ordem cronológica. A utilização de acervo produzido com a intensão de se fazer memória, por sujeitos desligado do filme, traz uma das recorrentes busca do cinema contemporâneo, muito presente no brasileiro, que tenta achar seu significado em memorias, como quisesse se redescobrir, criar uma identidade (seja uma pessoal do autor ou do próprio cinema), com medo de ser esquecido (Elena, de Petra Costa – leia a nossa crítica aqui – é um exemplo). Essa técnica carrega todo o debate entre ficção e não ficção, a possibilidade de existir algo não ficcional em um filme, por exemplo. Novamente, a metalinguagem assume um papel muito interessante, pois ao tratar como invenção pessoal, como obra sua, o diretor transforma registros feitos com mera intenção documental, comumente aceitos como registros reais (como se fosse o oposto a ficção), em uma ficção intencional, confundindo no âmago a possibilidade ficcional com a documental, ao mesmo tempo em que confunde a política, as utopias, com o cinema.
Corroborando essa tese, podemos olhar para o elenco dominado por não-atores: quem faz o pai é um diretor de cinema, o filho é feito por um pesquisador da história do cinema, o cineasta que aparece é, dentre diversas coisas, cineasta que trabalha com acervo em Super-8, o taxista é diretor de cinema, etc. Reichenbach foi um dos importantes diretores do cinema Boca do Lixo, que era realizado em São Paulo, geralmente com baixos orçamentos e rodados nas ruas (talvez o carro esteja procurando também o cinema autoral). Dessa forma, a metalinguagem é tão forte e tão sutil ao mesmo tempo que quase não seria necessário uma história para se dizer muito, mas parafraseando Godard em Passion (1982): sempre a história, por que precisa-se sempre de uma história?
O primeiro contato que temos com o personagem paterno é na sala de sua casa, um dos constantes cenários do filme construído através do excelente trabalho de arte (de Ana Paula Cardoso) que a fez uma sala com papel de parede todo carcomido, em tons médios contrastando com escuros, de cores desgastadas e sujas em uma palheta pastel onde predomina o marrom e o preto. Soma-se a esse decrépito cenário a iluminação marcada pela falta de luz natural e penumbra, o que constrói um clima claustrofóbico. Nesse ambiente constitui-se uma relação prisional e opressiva através de planos estáticos e, praticamente, realizados do mesmo ângulo e distância durante toda a película.
Os planos, na verdade, são todos estáticos e, geralmente, longos. Com o campo muito bem definido, os olhares dos personagens, suas ações e interações a todo momento dialogam com o “fora-de-campo”, que, por sua vez, através do som se comunica com o campo. O plano, assim, se faz prisão, nos impossibilita de ver o que está fora de seu enquadramento, colocando barreiras ao entendimento do todo, metaforizando os limites que nós dão os dogmas (nas palavras do próprio André: os dogmas nos aprisionam). Além disso, nossa posição é metaforicamente misturada a dos personagens, pois assim como eles, que parecem esperar algo acontecer, olhando muitas vezes para o vazio que se faz o fora de campo e a “quarta parede”, principalmente o pai, nós ficamos na expectativa de algo acontecer, olhando através desta “quarta parede” para eles ou para o vazio da sala. Contudo, enquanto ficamos esperando e olhando, nada acontece (ou, para mudar o tempo do verbo, enquanto ficarmos e esperarmos, nada acontecerá).
A música durante todo o filme se realiza diegeticamente, mas sempre mantendo aquele paradoxo, se fazendo não diegética. Este efeito acontece de duas maneiras: pela transfiguração dela gerada por um rádio, vitrola ou tocador de CD e pela “colocação física”[2] do aparelho no fora de campo. As músicas que são tocadas, em maioria, são marchas, hinos ou espécies de hinos que, após um início que corresponde a um som audível advindo do aparelho que o produz, são transformadas em uma sonoridade irreal que domina todo o plano e parece querer nos encantar e nos inspirar através dessa irrealidade. A primeira vez que nos deparamos com tal mudança é com uma marcha soviética (a mesma do trailer a baixo), que André coloca para tocar, para logo interromper incomodado por algo que não faz mais sentido. Depois, através de um taxista vascaíno fanático por hinos nacionais (notar que o Vasco da Gama é um time carioca, brasileiro e de portugueses), que nos faz ouvir o hino de um pequeno pais africano. O efeito realizado por esse é o mesmo da marcha, dominador, encantador e inspirador. Há aqui uma crítica implícita no poder ilusório que estes tipos de músicas podem produzir, tanto hinos, que são constituintes de um nacionalismo (uma forma de dogmatismo), como as marchas, que constituem hinos para luta. Outra consequência, que a música produz, é o domínio sobre os personagens e planos, silenciando aqueles e preenchendo todos os espaços desses. Sendo assim, representação de algo que está lá, mas não está, os dogmas dominam o ambiente e reduzem os indivíduos a uma pequinesa. Somente André em sua negação ao dogma e em sua desilusão consegue expressar seu incomodo.
Para exibir os filmes a seu pai, ele vai até um cineasta que trabalha com filmes em super-8 e segue o “Dogma 2002”, sendo ele o único membro. Antes de sermos introduzidos a esse novo personagem, vemos um filme dele montado através de imagens recuperadas em super-8, com uma narração peculiar, que denuncia a ditadura brasileira. A conversa entre os dois é extremamente interessante, pois enquanto o cineasta se encanta com as imagens que o outro trousse e quer que este se junte a ele para fazer um filme, André não aparenta interesse algum por cinema. Inclusive, recaindo na máxima do pensamento capitalista, ele pergunta: para que o outro faz aqueles filmes? O silêncio se estabelece e o diálogo encontra um ruído mais alto que a linguagem pode superar, pois um sonha e outro só consegue enxergar o mundo com utilitarismo (tudo tem que servir, ser útil). André, representante do ser humano desiludido, sem esperanças e utopías, é incapaz de sonhar e, aqui, o cinema se faz metáfora deste ato.
Todas as relações dos filme são marcadas pela dificuldade, ou até impossibilidade, de entendimento entre os envolvidos no dialogo. A comunicação entre pai e filho é pautada por colocações de André perante o silêncio do outro, ou seus resmungos. Sozinho o filho faz monólogos falando mal do pai, da vida e da casa, demonstrando seu desencanto com tudo. O pai, sem contato humano, sem vontade de interagir com outros de sua espécie, tem como fiel companheira Baleia, uma cadela. Aqui é claro, quase que explicito, o uso da metalinguagem ao se usar um dos ícones de um dos melhores filmes nacionais realizado na década de 60, Vidas Secas (Nelson Pereira dos Santos, 1963). Contudo, como no filme todo, essa utilização não é um mero e bobo, tão na moda, esteregge, pelo contrário, cria toda uma transferência de valores através de uma ligação entre a família errante, perdida em uma “eterna” seca, incapaz de se comunicar, de falarem entre si, mas, mesmo assim, complexos em seus universos interiores (externalizando por monólogos o que o livro fez pensamento) e a família do filme: a vida de ambas está seca, por motivos diferentes, mas mesmo assim seca, a intercomunicação verbal está morta e o monólogo, como técnica dramática, é a solução para externalizar o complexo dos indivíduos. A época em que os filmes foram feitos também cria uma ligação, mesmo que por antagonismo: o filme antigo surgiu na época da esperança de que o “sertão vai virar mar” (frase de Deus e o Diabo na Terra do Sol de Glauber Rocha, 1964) e a outro na que não existe mais utopias, não há, pois, esperanças.
De volta a casa (olha a história aí, maldita necessidade) André mostra para o seu pai parte do filme de seu irmão, que pela primeira vez assistimos diegéticamente: em uma bela imagem da projeção do filho perdido sobre a acabada parede da sala e sobre pai e filho sentados no sofá onde André tem que dormir. O filho perdido surge pela primeira vez como luz, como imagem, mas uma imagem dentro da imagem, que se funde a imagem André e a imagem Pai na projeção do cinema que nós espectadores estamos. O fim dessa história se dá com a metalinguística frase proferida pelo pai: “Não posso mais ver. Vejo tudo cinza”.
Vale notar que há mais elementos metalinguísticos os quais muito provavelmente não fui capaz de interpretar, mas faço notar um muito interessante que surge de forma sutil: por fora a casa é de um rosa fraco, também desgastado,o que se relaciona com o vermelho do comunismo. Essa analogia fica mais claro quando, após o fim da história, a tela fica preta e voltamos a ouvir o mesmo rádio do começo do filme, em que o locutor nos apresenta a música Bandera Rosa, hino dos que lutavam em prol do sonho comunista e da onde foi tirado o refrão que dá nome ao filme. Ao colocá-la para tocar, o disco se apresenta arranhado e, muito constrangido, o radialista começa a cantá-la a capela, de forma bela e emocionante, ao mesmo tempo em que imagens de um velho cinema destruído, portando bandeiras comunistas em suas paredes, aparecem em uma filmagem vertiginosa, contrapondo-se o otimismo das utopias expressa na canção com a sua destruição apresentada pelo cinema em destroços. Aqui a fusão entre cinema e utopias se completa magistralmente, ao mesmo tempo que tira destas o caráter metafísico (que ignora a pessoa singular em prol de algo maior) e seu irrealismo, para colocar na voz do indivíduo a sua realização.
Surge o “FIM” na tela, em vermelho. Acabamos sem esperanças, destroçados por um filme que não dá alternativas, não enxerga o caminho que o carro tem que fazer e nem seu destino. Somos seres perdidos e isolados que, agora, veem os letreiros subirem sobre a preta tela, quando, de repente, uma melodia “proveniente” de uma caixinha de música (que não vemos) começa delicadamente tocar a internacional. Contudo, no meio da música ela se transforma, produzindo um som que faz parecer que alguém resolveu dar corda na caixinha. Temos esperança, a final? Talvez a existência do próprio filme seja, junto à de outros brasileiros, a resposta de que sim, podemos ter.
[1] Os rolos de filmes são encontrados no primeiro andar, mas cinema só existe se as imagens criadas forem projetadas, o que o coloca em uma posição bem específica o afastando da experiência televisiva.
[2] Aqui é importante uma colocação: a imagem no cinema não existe em quanto realidade concreta, ela acontece na iteração da luz (um processo físico) projetada e refletida pela tela com nossa existência. Isso quer dizer que o que estiver fora de campo nem como processo físico existe, ele sempre se coloca como indução através de significantes.
BEM NA FITA: A forma e a história estão tão imbricadas que o filme se torna metalinguagem a todo momento.
QUEIMOU O FILME: Nada.
FICHA TÉCNICA
Roteiro e Direção: Michael Wahrmann Produção: Sara Silveira Produção Executiva: Renata Moura & Maria Ionescu Editor: Ricardo Alves Jr. & Fellipe Barbosa Diretor de Fotografia: Rodrigo Pastoriza Diretora de Arte e Figurino: Ana Paula Cardoso Elenco: André Gatti, Carlos Reichenbach, Eduardo Valente, Marcos Bertoni, Paulo Rigazzi, Maria da Penha, Julio Martí, Michael Wahrmann e Estopinha Desenho de Som: Daniel Turini & Fernando Henna Pesquisa de Super8mm: Danilo Carvalho & Marcos Bertoni Empresa produtora: Dezenove Filmes Coprodutora: Sancho Filmes Distribuição: Vitrine Filmes Distribuição Internacional: FiGa Films