(Spoiler Alert, se é que faz sentido avisar isso já que a história pouco importa).

Cães Errantes, vencedor do grande premio do júri do festival de Veneza, não é um filme “fácil”, não que pretenda ser, já que isso significa muitas vezes uma concepção enlatada, ou mero entretenimento. Justamente o contrário, o filme de Tsai Ming Liang não faz concessões ao espectador, não se adapta ao gosto da massa, não se coloca como diversão, assume claramente o papel do cinema como arte, questionador e instigante, a partir de uma construção visceral em todos seus aspectos (da fantástica fotografia a direção de arte impecável, por exemplo).

A história enquanto narrativa pouco tem a contar, se quer clara ela fica, importando muito mais a forma construída pela linguagem. Para entender o que estou dizendo exponho uma possível sinopse: Um homem fracassado na vida, alcoólatra, pai de duas crianças e muito pobre, vive com seus filhos em um espaço desolado da cidade. De dia trabalha segurando na rua placas que anunciam moradias, enquanto seus filhos vagueiam pela cidade, principalmente em um supermercado, local que sua filha é acolhida por uma mulher que lhe ajuda. Esta, toda noite, vai em uma destruída construção alimentar cães e olhar para um imenso painel. A sinopse exposta pode parecer dizer muito, mas pelo contrário, explica muito pouco e se quer podemos afirmar que é fiel ao que o filme conta, se é que ele tem uma história propriamente dita, explico mais adiante, por enquanto nos atemos a uma possível história.

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De fato ao olharmos o começo do filme, o plano inicial, temos aquela mulher, a que ajuda a filha no supermercado, penteando seu próprio cabelo com as mesmas duas crianças dormindo ao fundo, em um cenário em que as paredes são revestidas com um papel destruído. Depois do longo plano inicial vemos as duas crianças em uma espécie de bambuzal caminhando até acharem um túnel de pedra, construção humana, corta e estamos na cidade grande, mais especificamente na capital de Taiwan, Taipei. A partir daí acompanhamos a rotina do pai e seus filhos e a sinopse exposta acima se faz “verdadeira”. No entanto, na parte final do filme, voltamos para aquele cenário de paredes destruídas, onde toda família, mais a mulher do supermercado, se encontra e a “história” continua. Poderíamos supor que o que vimos antes se trata de um flashback, o que, se pode ser verdade, não contribui muito para o entendimento do filme e se quer para explicar a cena que antecede a essa volta: o pai em uma canoa em um rio, sob extremo temporal, no meio de uma floresta urbana, gritando para a mulher, perguntando o que ela vai fazer com os filhos dele, já que no caminho para pegar a canoa a mulher leva as crianças com ela, que vão com gosto.

O que temos não é um mero flashback, nem se quer uma história linear, nem contada de trás para frente, ou de qualquer outra forma cronológica. O que presenciamos na tela do cinema é uma experiência profunda do plano como o todo significante do filme, ao contrário da concepção de que ele é a menor parte, e como “plano-conceito sentimental”. Devemos olhar para a forma se quisermos interpretar o filme. Uma constatação é de que todos os planos são longos planos sequência, que parecem muitas vezes desconexos um dos outros, o que induz uma não temporalidade definida nos acontecimentos, a maioria estáticos e angulados (ou em plangé ou em contra-plangé), nos causando estranheza ao nunca nos colocar em uma posição “humana” (linear ao nível dos olhos). Nosso personagem principal, exposto nestes planos, surge em um sofrimento constante: de dia trabalhando em condições precárias e a noite acompanhado de seus filhos em ambientes sujos. Isso quer dizer que o plano está construindo um significado que sai do mero funcionalismo e da subserviência ao espírito do personagem principal, para edificar, no caso, a desolação, a destruição, a desesperança, a imobilidade e a constância de algo a mais. O filme, assim, é o estado em que vivem os personagens, em determinada condição, construído de forma tão profunda que o que poderia ser considerado realidade, em uma concepção objetiva, é ao mesmo tempo os sentimentos e a condição deles na sociedade.

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Voltemos aos personagens reaparecendo na casa de paredes destruídas, pois é extremamente significante a cena de retorno: um pai de família destruído, silencioso; uma mulher, que pode ser a mãe ou não, animando os filhos com o rito do aniversário deste pai; e as crianças ainda aprendendo sobre o mundo, felizes com o aniversário. Neste momento temos a impressão de que o que vimos antes foi um estado de espírito dos personagens, mas depois de um tempo descobrimos que não podemos fazer aquela diferenciação entre realidade objetiva e sentimento, um é o outro, pois tudo o que vimos antes está nas sequências seguintes, a maioria dentro da própria casa. Contudo, não aceitando que a história tenha uma cronologia lógica, quero fazer notar que qualquer ideia que se tenha de que os personagens são pobres financeiramente, que vivem e dormem em um buraco na cidade se perde, pois, logo vemos o pai, nesta casa, relaxando em uma ultramoderna cadeira de massagem, enquanto a mulher ajuda as crianças com seus deveres de casa.

Podemos entender, dessa forma, que o que vimos durante quase todo o filme é metáfora universalizante da condição humana na sociedade do capital, o ser humano em seu trabalho sem sentido, desgastante, sofrido, que lhe faz anunciar para outros o que ele não pode ter. Em um mundo sem propósito, que não justifica a condição dos indivíduos e nem lhes concede algum motivo de esperança, em que o passado se torna a única referência e portador de sentido, mesmo que desgastado ou muito distante. Um dos mais belos planos do filme, que talvez seja um dos mais belos closes dos últimos tempos, apresenta o pai em seu precário emprego, abaixo de um viaduto, sobre vento e chuva, cantando uma música em ode ao imperador, sobre o sacrifício a esse, enquanto chora. Outro exemplo é o painel, pintura de um campo idílico, já desgastada, que se encontra em um prédio destruído, aonde a mulher vai todas as noites e o olha carregada de emoção, enquanto lagrimas desabrocham de seus olhos.

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O ser humano, que arrancado das benesses da civilização, é animalizado, colocado em estado natural. Natureza que, se metaforiza a alegria da liberdade, seja como memória (no painel), seja em campo verdejante ou em uma praia (nestes dois últimos exemplos notar que a alegria se dá com a não há interferência da cidade no ambiente mostrado), é metáfora do drama que se vive, pela desolação de bambuzais perdidos no meio da cidade; pelo desespero magnânimo em forma de tempestade; pela necessidade de se alimentar. Esse imperativo é metáfora da condição dos personagens, que se transformam em Cães Errantes: assistimos a mulher ir toda noite ao prédio destruído onde ela, antes de ver o painel, alimenta cães de rua que lá se encontram, assim como ela faz com a filha do homem e depois com toda família. É a mulher que, mesmo em um emprego supérfluo em um supermercado, o mesmo em que as crianças vagueiam durante o dia, cuida do bem estar da família, faz compras e ajuda no dever de casa, se torna o pilar de sustentação da família. Qualquer semelhança com a condição feminina no mundo em que vivemos, não é pura coincidência.

Em desespero total, o ser humano, em uma vida amarga e desolada, devora em ódio e desesperança o outro, metaforizado em uma das cenas mais impactantes do filme: o pai que volta bêbado, ao deitar-se do lado dos filhos já dormindo, se descontrola e devora a boneca que sua filha construiu com um repolho comprado no supermercado[1]. O que pode nos evocar Saturno devorando suas crias, só que aqui não para manter o poder, mas para acabar com aquela realidade sofrida. Cena que, não por menos, antecipa a pretensa fuga do pai com os filhos pelo rio em pleno temporal, os quais são salvos pela “mãe” antes de se perderem nas águas naturais deste rio.

O final do filme tem um penúltimo plano em que sofremos com o pai e a mulher por 13 minutos, sofremos o sofrimento e a desolação dos dois (é tão impressionante a dificuldade de aceitarmos um plano tão longo sem ação física extravagante, que no cinema todos se incomodam), para logo depois sermos por eles abandonados em uma destruída sala a frente do citado painel. Assim como eles, acabamos olhando para algo que se foi, acabamos sem sentido, sem podermos compreender tudo o que vimos e o que sentimos. Tsai Ming Liang nos permite viver uma experiência profunda (como defendia Horkheimer), que não nos permite indiferença, nos afastando ao máximo do cinema de massa, da industria cultural e sua superficialidade do “sempre o mesmo”. Sim, é um filme “difícil”, mas é uma experiência essencial.

[1] Aqui há uma ligação total com a atualidade, em que jovens chineses estão passeando com repolhos para suprir suas carências

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BEM NA FITA: O filme como um todo, que nos oferece uma experiência visceral.

QUEIMOU O FILME: Nada.

FICHA TÉCNICA:

Gênero: Drama
Direção: Tsai Ming-liang
Roteiro: Chen Yu Tung, Ming-liang Tsai, Peng Fei Song
Elenco: Lee Kang Sheng, Lu Yi Ching, Yang Kuei Mei
Produção: Jacques Bidou
Fotografia: Pen-jung Liao, Qing Xin Lu, Woon-Chong Shong
Montador: Chen-Ching Lei
Duração: 138 min.