Ao Seu Lado
Crítica do filme
Sono de Inverno ou Winter Sleep (Kış Uykusu, no original) é um filme Turco, vencedor de melhor filme estrangeiro em diversos festivais, do excelente diretor Nuri Bilge Ceylan, que ganhou inúmeros prêmios de direção por ele (incluindo a Palma de Ouro). O filme apresenta a história de Aydin (Haluk Bilginer), um ex-ator e proprietário de inúmeras residências, que dirige um pequeno hotel no centro de Anatolia com sua jovem esposa Nihal (Melisa Sözen), com quem tem um relacionamento tempestuoso, e sua irmã Necla (Demet Akbag), que está sofrendo de seu recente divórcio. Além dos problemas familiares, que pioram no inverno, pois quando a neve começa a cair o hotel se transforma em um isolado abrigo e lugar inevitável que alimenta suas animosidades, Aydin precisa lidar com seu inquilino inadimplente, Hamdi (Serhat Mustafa Kiliç).
Olhando a sinopse e o título podemos inferir que o inverno de Sono de Inverno representa tanto uma metáfora como um catalisador dos problemas que o filme aborda. Uma inferência muito correta e calmamente explorada pelo filme, nas inúmeras cenas de conversas aparentemente cotidianas, tão calma que em nenhum momento o problema tempo natural se sobressai ou parece ser mais importante que os personagens humanos, tanto em suas histórias pessoais como em suas emoções. Vamos, no decorrer das três horas e pouco de filme, descortinando os verdadeiros problemas sociais, econômicos, culturais e emocionais de cada personagem e das relações entre eles em um roteiro muito bem construído. Com a força do inverno que cada vez domina mais o ambiente, do simples frio à abundancia de neve, as questões vão surgindo até o ponto em que o isolamento confina cada personagem e expõe o interior de cada um e, assim, os dramas pessoais e sociais acordam de seu sono de inverno.
A construção das relações entre estes personagens isolados, em seus mundos próprios, é dotada de espaços, de distanciamento. Não há toque entre eles, não há proximidade, só a violência, física ou simbólica, pode gerar contato, pode… A fotográfia de Gökhan Tiryaki (fotografo dos 3 últimos excelentes filmes de Ceylan) exalta esse distanciamento e, através de um jogo de luz e sombra, denuncia a existência de algo que não podemos ver. A proximidade do espectador com os personagens, no entanto, é grande, trabalhando majoritariamente com planos fechados que nos aproximam deles, principalmente do personagem principal, o diretor e o fotografo permitem que as expressões de cada ator digam algo, ao mesmo tempo que nos prendem no casulo vivido pelos personagens. Cada um destes, isolado em seu mundo, carrega, nas suas sombras, suas crenças e ideais sem conseguir se comunicar com o outro. O ouvinte não deixa ser comunicado ou não aceita a visão do que comunica, fazendo de seu casulo de sombra invernal sua única verdade. Em um mundo onde cada um vive como se sua maneira de vê-lo fosse a correto, a comunicação e as relações são tomadas pela violência, que vem a luz nos gestos, nas expressões e nos olhares. Aqui reside a “nevasca invernal”, pois por trás de todo ato violento existem recalques que são campo fértil para o bárbaro. Este é o inverno, o silêncio, a prisão, a solidão, o egoísmo, a vaidade, o vicio, o poder sobre a vida dos outros, etc. A barbárie tomou conta da vida de cada personagem antes mesmo da película começar e de forma calma, sempre nas sombras, ela se faz persistente.
A direção de arte de Gamze Kus (se aventurando pela primeira vez no cinema nesta função) é primorosa. A cenografia, que exalta o realismo, mas não se perde nesse, tornando os objetos elementos constituintes do inverno de cada personagem, seja em ambientes cheios de posse, mostrando o que parece ser uma riqueza material forjada por pertences que “sujam” a imagem, apontando a existência de inúmeras questões não contadas, seja pelo oposto, deixando um ar de solidão – os aposentos da casa, principalmente o escritório do personagem principal, são bons exemplos do primeiro caso e a recepção do hotel do segundo.
O interessante é notar que a história nunca assume uma visão simplista, inclusive provoca aqueles que tem uma, nos enganando até o final sobre a mensagem que constrói. A barbárie, assim, se apresenta holisticamente e sem uma solução fácil, estando presente nas relações entre sexos, de autoridade, entre mundo exterior e interior, na briga pela liberdade individual, na luta de classes, etc. Tomemos por exemplo o personagem de Aydin, vaidoso e egocêntrico, um chefe de família, herdeiro rico e poderoso, que exerce poder no seio familiar e na vida dos seus inquilinos (lembrando o senhor de terras e patriarca de O Som ao Redor, 2012, de Cleber Mendonça Filho), mas intimamente solitário. É através dele que quase todas as relações se constroem, ou, pelo menos, orbitam seu universo, sendo interferidas pela barbárie de seu ser . Sua esposa é cheia de compaixão e pesar e parece ser a única solução a história contada, mas é aqui que a inocência da compaixão que denuncia a barbárie se faz, também, parte dela. Seu inquilino Hamdi, pobre e devedor, entende sua posição social inferior e se submete a ela, não inocentemente, mas buscando manter a casa que sua família mora a muio tempo. A relação deste com seu sobrinho é um ponto muito forte no filme, pois aqui está a educação que vai formar a geração mais jovem, em prol da submissão ou não, negação representada pelo bêbado pai.
Os personagens são bem construídos, com certa complexidade, e, majoritariamente, muito bem interpretados, com destaque para Haluk Bilginer (metamorfoseando a mascara do personagem magistralmente), Demet Akbag (Impecável), Ayberk Pekcan (como Hidayet, empregado de Aydin) e Serhat Mustafa Kiliç. A única a destoar é a exuberante Melisa Sözen, que pela beleza em si destoa, o que compõe muito bem o filme, mas que na atuação mescla bons momentos e maus momentos. Bem verdade que a personagem dela, inocente, é a menos complexa, o que cria certa dificuldade por pedir uma postura mais direta e clara nas emoções que os demais. No entanto, não é possível deixar de notar certo maniqueísmo, o que simplifica um pouco as relações e desumaniza um pouco os personagens.
O filme, apesar de ter muitas qualidades, sofre de dois outros pequenos defeitos, fora os citado logo a cima: (spoiler alert) a personagem de Demet Akbag (a irmã) simplesmente desaparece e ninguém se importa (fim do spoiler) e o roteiro, calmo em seu desenvolvimento crescente da exposição dos personagens e das situações, acaba por “errar a mão” e ir além desta exposição construtiva, chegando a explicar quase toda a situação,como em um filme Hollywoodiano. Neste último caso, o maior exemplo é o solilóquio final que “cai de paraquedas”, como se o produtor tivesse obrigado a colocá-lo para facilitar o entendimento da história pela “burra” plateia (o que fizeram, por exemplo, os autoritários produtores de Alfred Hitchcock em Vertigo, 1958, e Psicose,1960).
Acredito, para finalizar, que seja um dos melhores filmes a estrear esse ano em nossos cinemas, com atuações, fotografia, arte e direção impecáveis. Os poucos defeitos não atrapalham a obra e, com certeza, a experiência de assisti-lo será construtora.
BEM NA FITA: atuações, fotografia, arte e direção impecáveis que se juntam a um ótimo roteiro, quase sem falhas.
QUEIMOU O FILME: Certo maniqueísmo, personagem que simplesmente desaparece e ninguém se importa e o final expositivo.
TRAILER:
FICHA TÉCNICA:
Título original: Winter Sleep (inglês) e Kış Uykusu (turco)
Gênero: Drama
Direção: Nuri Bilge Ceylan
Roteiro: Ebru Ceylan, Nuri Bilge Ceylan
Elenco: Ayberk Pekcan, Demet Akbag, Ekrem Ilhan, Emirhan Doruktutan, Fatma Deniz Yildiz, Haluk Bilginer, Melisa Sözen, Nadir Saribacak, Nejat Isler, Rabia Özel, Serhat Mustafa Kiliç, Tamer Levent
Produção: Zeynep Ozbatur Atakan
Fotografia: Gökhan Tiryaki
Montador: Bora Göksingöl, Nuri Bilge Ceylan
Duração: 196 min.
Ano: 2014
País: Alemanha / França / Turquia
Cor: Colorido
Estreia: 30/04/2015 (Brasil)
Distribuidora: Pandora Filmes
Estúdio: Bredok Filmproduction / Memento Films Production / Zeynofilm