Ao Seu Lado
Crítica do filme
Não se esquece uma história da noite para o dia. Seja ela boa ou algo que se queira guardar no fundo de uma gaveta, deixando que as traças do tempo se encarreguem dela. Grandes histórias provocam dois tipos de consequências: lembranças memoráveis ou feridas que demoram a cicatrizar. As do segundo tipo são como chagas pustulentas que, ocasionalmente, retornam para incomodar. Ainda mais quando foram cultivadas ao longo de 30 anos. Assim são as lembranças dos ‘Anos de Chumbo’, como é chamado o período em que os militares governaram o Brasil.
Iniciada em 1º de abril de 1964, nossa ditadura tupiniquim deixou marcas profundas nos que sobreviveram para contar esta triste história. Muitas famílias foram destroçadas. Pais e filhos sumiram de uma hora para outra. Alguns nunca mais foram vistos e seus parentes não tiveram a chance de prantear seus corpos. É impossível se imaginar nesta situação. A melhor forma de entender este período talvez seja dar voz a tais personagens.
Em Setenta, documentário que mostra o destino de dezoito homens e mulheres, todos integrantes do grupo de 70 presos políticos que foi trocado pelo embaixador suíço Giovanni Bucher, sequestrado pela Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), a cineasta Emília Silveira faz isto. Dá voz a estes personagens. Contudo, de um jeito diferente do que estamos habituados a ver em obras sobre o tema. Em vez focar apenas nos relatos de tortura, sua intenção foi mostrar que, apesar das feridas, a maioria conseguiu seguir em frente e reconstruir suas vidas.
Os entrevistados formam um mosaico diversificado. São seres humanos com origens e sonhos distintos. Affonso e Mara, por exemplo, se casaram e tiveram seis filhos antes de pegarem em armas. Já Nancy é uma americana que veio pequena para o Brasil. Gente que jamais teria se encontrado se não tivesse um objetivo comum: lutar contra a ditadura. Hoje, há outro laço que os unem. Nenhum deles se arrepende do que fez.
A diretora não se limitou a ouvir somente os sobreviventes deste episódio. Com a paciência dos perseverantes, Emília garimpou fotos e imagens de arquivo que remetem às histórias contadas no filme. Muitas foram cedidas pelos próprios personagens. Por conta disto, chama atenção a bela montagem feita por Joana Collier. A cargo de Fábio Mondego, a trilha sonora é um verdadeiro achado, caprichando na tensão nos momentos certos
Nem todos os personagens de Setenta tiveram um final feliz. Frei Tito se enforcou em Paris, aos 29 anos. No ocaso da vida, via seus torturadores em todos os cantos da capital francesa. A estudante de medicina Dora, 31 anos, se jogou embaixo de um trem, em Berlim. Não pode ser a mãe dos filhos de Reinaldo Guarany. Este teve que reconstruir sua vida com outra mulher e, hoje, é pai de duas meninas inteligentes. Entretanto, nada disto tira a mensagem de esperança do documentário.
Desliguem os celulares e boa diversão.
PS: Oficialmente a ditadura começou no dia 31 de março. No entanto, o que os militares não admitem é que o golpe foi deflagrado na madrugada de 1º de abril, popularmente conhecido como o dia da mentira.
BEM NA FITA: O enfoque dado pela cineasta Emília Silveira. A montagem, a trilha sonora e a evidente importância do documentário como registro de um capítulo da história do nosso país.
QUEIMOU O FILME: Sem censura, nada.
FICHA TÉCNICA:
Direção: Emília Silveira.
Elenco: Wilson Barbosa, Nancy Mangabeira Unger, Vera Rocha Dauster, Ismael de Souza, Marco Maranhão, Jaime Cardoso, Maria Auxiliadora Lara Barcelos, Tito de Alencar Lima, Carmela Pezzutti, Mara Alvarenga, Affonso Alvarenga, Rene de Carvalho, Bruno Dauster, Elinor Brito, Chico Mendes, Jean Marc Von Der Weid, Reinaldo Guarany e Luiz Sanz.
Roteiro: Sandra Moreyra.
Produção: Cavi Borges, Jom Tob Azulay, Rosane Hatab e Marcia Pitanga.
Direção de Fotografia: Vinicius Brum.
Montagem: Joana Collier.
Trilha Sonora: Fábio Mondego.
Direção de Arte: Patricia Tebet.
Duração: 96 min.
País: Brasil.