O pesquisador e professor da Universidade de São Paulo (USP) Thiago Salla lançou na última segunda-feira o livro Conversas, pela editora Record, no Museu da Imagem e do Som (MIS) em São Paulo. Fruto de uma parceria com a também pesquisadora Ieda Lebensztayn, Conversas volta-se para a relação Graciliano Ramos com a imprensa e reúne 45 entrevistas, enquetes e depoimentos que o autor concedeu a diferentes veículos desde 1910 até 1952. A obra inclui ainda 19 causos com o próprio Graciliano como figura central. Em entrevista ao BLAH CULTURAL, o professor fala sobre o livro recém-lançado, sua relação com Graciliano Ramos e a exposição  sobre o autor – Conversas de Graciliano Ramos –  que está em cartaz no MIS e é baseada na obra de Salla.

BLAH CULTURAL – Quando foi seu primeiro contato com a obra de Graciliano Ramos? Como foi?

Thiago Salla – Meu primeiro contato com a obra de Graciliano Ramos, como acontece com a grande maioria dos estudantes brasileiros, deu-se no Ensino Médio. Vidas Secas e S. Bernardo abriram-me um mundo de possibilidades. Mesmo ainda um iniciante no mundo das letras, já conseguia perceber ali um texto muito bem-escrito, que descortinava um mundo desconhecido (mas tão próximo em seus traços elementares), marcado por violências, misérias, humilhações. De um modo ainda muito limitado, já conseguia perceber que, na leitura de Graciliano, fruição estética e conscientização social (despida de qualquer natureza panfletária) caminhavam lado a lado. Depois vieram Caetés, Angústia e a leitura da obra memorialística, com destaque para Infância, que me ajudaram a compor o quadro completo da poética deste escritor marcado pelo rigor formal e pelo tratamento progressista de um caldeirão de conflitos bem brasileiro, prestes a explodir.

BC – Qual é a sua obra favorita do autor e por quê?

TS – S. Bernardo (grafado deste jeito conforme determinação do próprio autor). Todas as vezes em que releio o livro fico admirado com a precisão de cada frase e com o poder do protagonista Paulo Honório em se assenhorear da narrativa e em se agigantar (mesmo no desenrolar de sua derrocada) diante de tudo e de todos. Admira-me também o modo por meio do qual Graciliano utiliza a prosa do protagonista para discutir literatura, reafirmando a proeminência do romance nordestino de 1930 (despido de adornos bacharelescos e centrado na materialidade da vida interiorana de um país ainda por se conhecer) frente à produção literária feita anteriormente (sobretudo o romantismo do século XIX).

BC – Gostaria de saber mais sobre o livro recém-lançado, Conversas. Poderia falar sobre sua proposta e desenvolvimento?

TS – Conversas é fruto de pesquisas individuais que vimos desenvolvendo há mais de dez anos em diferentes acervos brasileiros e, principalmente, da empreitada conjunta que iniciamos há algo em torno de um ano e meio, voltada, mais especificamente, à reunião de todas as entrevistas e depoimentos que Graciliano concedeu ao longo da vida. Nesse período, organizamos o material já coletado, encontramos novos documentos, bem como produzimos todas as notas de rodapé que visam a fornecer ao leitor uma série de coordenadas literárias, políticas e jornalísticas referentes aos textos que ora apresentamos.

Sobre a estrutura da obra: Conversas reúne 45 entrevistas, enquetes e depoimentos que Graciliano Ramos concedeu a diferentes veículos jornalísticos ao longo de sua trajetória intelectual, desde 1910 até 1952. A obra inclui ainda 19 causos (pequenas narrativas de caráter anedótico), cuja figura central é o autor de Vidas secas. Rigorosamente anotado e disposto em ordem cronológica, esse conjunto de textos oferece leituras inéditas de sua vida pessoal, artística e política, permitindo divisar outro Graciliano. Para além da imagem consolidada de um homem tão só calado e avesso a bate-papos, Conversas revela as facetas bem-humorada, simpática e falante do escritor, que não deixava de se posicionar de modo direto e contundente sobre as principais questões da época em que viveu.

Na busca por situar melhor cada texto, acabamos por recuperar a história de cada um dos periódicos em que os textos de Graciliano foram publicados. Sobretudo a partir dos anos 1930, tratava-se de um momento de efervescência editorial que se refletia da criação e ampliação das tiragens de periódicos literários, com destaque para os veículos Dom Casmurro, Vamos Lêr!, Diretrizes, Revista do Globo, Revista Acadêmica, Boletim de Ariel, entre outros. Empreendemos também a recuperação de informações sobre os diversos veículos comunistas (ou pertencentes à esfera de influência do PCB) em que as entrevistas e depoimentos de Graciliano foram estampados, tendo em vista colaborarmos com a historiografia em torno da imprensa comunista, sobretudo a partir da legalidade temporária do PCB em 1945. Nesse sentido, além do interesse evidentemente literário (despertado pela figura de Graciliano), Conversas permite um passeio pela história do jornalismo impresso da primeira metade do século XX, com destaque para os desdobramentos do gênero entrevista nesse período, conforme discutimos e apresentamos no alentado prefácio que abre o livro.

Um dos grandes méritos do livro Conversas é permitir que se analise o processo de construção do lugar de destaque ocupado por Graciliano no panteão literário nacional. Para além dos evidentes méritos do texto do autor, as entrevistas e depoimentos que ora recolhemos e que circularam em importantes e prestigiosos periódicos da primeira metade do século XX possibilitam mapear como seu nome vai ganhando ressonância no limitado círculo intelectual brasileiro. A obra, portanto, além de amplificar as possibilidades de estudo da trajetória artística e política de Graciliano, fornece elementos para a investigação da sociabilidade literária e das relações de força responsáveis por ratificar a notoriedade dos homens de letras no período em questão.

BC – Como se deu a parceria com Ieda Lebensztayn para a concepção do livro?

TS – Há mais de dez anos eu e Ieda pesquisamos a obra de Graciliano Ramos com foco em fontes primárias, ou seja, jornais e revistas em que inicialmente os textos de Graciliano foram publicados, sem esquecer também dos manuscritos do escritor que se encontram na UFMG e, sobretudo, no IEB/USP, instituição para a qual a família destinou quase a totalidade dos documentos do escritor. Com relação a nossos estudos sobre material estampado primeiramente em periódicos, eu me dediquei a estudar a revista getulista Cultura Política, na qual Graciliano publicou uma polêmica série de textos numa seção intitulada “Quadros e Costumes do Nordeste”, e a Ieda se debruçou sobre a revista Novidade, publicada em Alagoas, no início dos anos 1930, na qual Graciliano, pela primeira vez, publica o capítulo de um romance (Caetés), entre outros escritos que fornecerão as coordenadas de sua produção romanesca e memorialística futura.

Ao longo dos nossos percursos de pesquisa, como procurávamos entender o lugar de tais publicações na trajetória intelectual de Graciliano, bem como os desdobramentos literários e políticos da obra do artista alagoano, fomos recolhendo todo material que encontrávamos num verdadeiro trabalho de arqueologia literária. Foram muitos anos revirando acervos carunchosos e vencendo a burocracia na busca dos textos que resultaram na publicação de Garranchos, Cangaços e, agora, Conversas.

Resumindo: em função de termos o mesmo objeto de pesquisa (a obra do escritor Graciliano Ramos), da similaridade entre nossos métodos de estudo (privilégio para fontes primárias e para a conexão entre estas e as produções do escritor alagoano) e de frequentarmos, sobretudo, a mesma instituição de pesquisa – o IEB/USP, onde foi depositado todo o acervo do escritor e criado o Arquivo Graciliano Ramos – fomos estreitando nossos laços e produzindo trabalhos em parceria.

Thiago_Salla

BC – De que maneira seu livro Conversas dialoga com a exposição sobre o autor que está no MIS?

TS – Para você perceber a conexão direta entre o livro e a exposição “Conversas de Graciliano Ramos”, basta considerar que esta tomou emprestado o título daquele. Mais especificamente, a exposição com curadoria de Selma Caetano, mediante vídeos, fotos e textos e objetos expostos procura traduzir as informações presentes não só no volume Conversas lançado agora, mas também nos escritos presentes na continuação dessa obra que será lançada nos anos vindouros. Trata-se do segundo volume de Conversas que trará depoimentos de amigos e familiares do romancista, publicados na imprensa, sobretudo nos anos 1930, 1940 e 1950. Tanto o livro como a exposição procuram conectar as falas de Graciliano ao percurso artístico e político do escritor, abrindo espaço para que se ilumine a faceta loquaz do artista, que se empenhou pela compreensão do outro (ato que está na matriz etimológica da palavra “conversar”). Nesse processo, tornam-se ainda mais explícitos a força de sua arte e o desejo de dar voz à sua consciência, inconformada com a naturalização da violência e de iniquidades.

BC – Você realizou uma pesquisa sobre a recepção do romance Vidas Secas fora do Brasil. Como você avalia essa recepção aqui no Brasil? Poderia traçar uma comparação?

TS – Na verdade, atualmente, estudo a recepção do romance brasileiro de 1930 em Portugal, com foco na figura de Graciliano Ramos. Trata-se de um trabalho de historiografia literária no qual levo em conta artigos estampados em jornais e revistas portuguesas, cartas, livros, entrevistas e depoimentos, bem como a própria trajetória editorial de Graciliano do outro lado do Atlântico. Interesso-me tanto pelo fascínio que Graciliano Procuro despertou nos neorrealistas lusos, situados mais à esquerda no espectro político, quanto pelo interesse que sua obra gerou no âmbito do Estado Novo português, num contexto de aproximação entre o Departamento de Imprensa e Propagada brasileiro e o Secretariado da Propaganda Nacional de Portugal.

Mais especificamente sobre o livro Vidas Secas, assim como aconteceu no Brasil, a obra recebeu acolhida extremamente favorável em Portugal.A importância que Vidas Secas alcançou no Brasil pode ser percebida em Conversas. Destaque para a desconhecida entrevista “Vidas secas: Uma palestra com Graciliano Ramos”, feita por Brito Broca, pouco antes do lançamento do romance em 1938. Nesse bate-papo estampado em A Gazeta, Graciliano esmiúça o processo de composição da história de Fabiano, de Sinha Vitória, dos dois meninos e da cachorra Baleia e norteia a apreciação da obra feita pela crítica a posteriori. Nesse processo, o autor explicita o seu meticuloso trabalho de auscultar a “alma do sertanejo”, descrevendo-o como um sujeito macambúzio e sisudo, dotado de parcos recursos comunicativos, muito distante da típica e falsa representação dos matutos como verdadeiros “tagarelas”. Nesse sentido, afirma que o caráter original do livro, quando comparado ao conjunto da literatura regionalista produzida até então, estaria no fato de ter privilegiado o homem e não a pintura do meio. Graciliano afirma: “O que me interessa é o homem, o homem daquela região aspérrima. Julgo que é a primeira vez que esse sertanejo aparece na literatura” (ver p. 68 de Conversas). Deve-se ressaltar, por fim, que tal conversa com Brito Broca acabara por reforçar o estatuto de celebridade adquirida por Graciliano no final dos anos 1930: a partir desse texto publicado em A Gazeta de São Paulo, o escritor alagoano se torna alvo dos mais diferentes entrevistadores, chegando a conceder algo em torno de vinte entrevistas nos dez anos subsequentes.

BC – Além de romancista, Graciliano trabalhou com outros gêneros como crônica, conto e teatro. Quais as diferenças e/ou semelhanças entre o Graciliano romancista, o cronista, o contista e o dramaturgo?

TS – As diferenças dizem respeito a especificidades inerentes a cada gênero. No conto, prevalece a concentração dramática ao passo que no romance a ação se espraia e se desdobra em diferentes subtramas que nuançam e problematizam as múltiplas facetas do tema da obra. Na crônica, avulta a proximidade do diálogo com os leitores do jornal. Na peça de teatro, predomina a cena, e o narrador se apaga em meio à agilidade das falas das personagens. Contudo apesar das particularidades de cada gênero, há características comuns entre os diferentes textos que nos permitem filiá-los a Graciliano Ramos: a expressividade de uma linguagem concisa, marcada pela substantivização e pelo rigor formal. Até mesmo nos discursos recolhidos em Garranchos a maestria do autor de Vidas Secas se faz presente. Tais peças retóricas, meticulosamente elaboradas por escrito, destacam-se do ponto de vista formal pelo cuidado e planejamento da expressão, assemelhando-se em muitos aspectos à prosa dos demais livros do escritor. O mesmo se pode dizer das entrevistas recolhidas em Conversas, pois muitas delas foram redigidas pelo próprio Graciliano e entregues aos entrevistadores, o que ratifica seu cuidado com as palavras, na busca pela expressão precisa a qual melhor traduzisse os inúmeros temas e assuntos sobre os quais discorria.

BC – Seu trabalho vem contribuindo para que a produção de Graciliano seja conhecida além dos romances. Em Garranchos e Cangaços, você reuniu textos publicados em livro pela primeira vez. O que faltou para que essa produção do autor fosse mais difundida?

TS – Primeiramente, faltava o trabalho de resgate desses textos inéditos, que se encontravam apenas em manuscrito ou em jornais e revistas há muito esquecidos. Para vencer esse primeiro obstáculo, foram necessários muitos anos revirando arquivos de São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais e Alagoas, sem contar o trabalho realizado em diferentes acervos portugueses.

Outra questão, diz respeito ao caráter periférico e aparentemente menor de tais textos, quando se olha para o conjunto da obra de Graciliano. De fato tais escritos estão longe da envergadura alcançada pelas melhores páginas de seus romances ou livros de memória. Todavia, em sua modéstia, esses escritos ganham lugar de destaque não só em termos linguísticos, mas em função dos conteúdos mobilizados pelo autor, uma vez que trazem a força da pena de Graciliano e permitem um passeio pelas principais questões políticas e artísticas que marcaram a primeira metade do século XX no Brasil.

BC – Você tem outros projetos sobre o autor em andamento ou alguma perspectiva de isso acontecer? Poderia falar sobre isso?

TS – Além do estudo da recepção do romance de 1930 em Portugal, com foco na figura de Graciliano Ramos, e da pesquisa e organização do segundo volume de Conversas, desenvolvo atualmente um trabalho em que analiso o exemplar da Bíblia que pertenceu a Graciliano. Trata-se de uma edição luxuosa de 1864, publicada pela Garnier, que recentemente foi localizada no Arquivo Graciliano Ramos do IEB/USP. Tal edição das Sagradas Escrituras encontra-se fartamente anotada e comentada pelo autor. É curioso perceber que Graciliano utilizava a Bíblia para estudar gramática, com destaque para assuntos relacionados à colocação pronominal e regência verbal. Além disso, tecia comentários irônicos sobre o texto bíblico. Numa passagem do Evangelho de São Mateus (Mat 5, 27-30) que se refere ao adultério e à necessidade de arrancar os próprios olhos e braços para evitar tal pecado, assim comenta causticamente Graciliano: “Eu ficaria todo cego e maneta”.