Lembro Mais dos Corvos é um documentário que mostra o depoimento de uma mulher transgênero. A atriz e cineasta Julia Katharine conta a história de sua vida com naturalidade e leveza, mesmo nas partes mais dramáticas, esbanjando carisma, num filme onde ela é a única atração, e que, por isso mesmo, nem precisa usar recursos como ilustrações ou participação de outras pessoas.

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Durante uma noite de insônia da protagonista, o diretor Gustavo Vinagre registra sua conversa com a atriz, utilizando alguns closes e uma mise en scène que deixam o público mais próximo da entrevistada. O cenário é apenas a sala da casa dela, mas alguns objetos demonstram a personalidade de Julia: os maços de cigarros, DVDs, um frasco de própolis, uma garrafa de vinho rosé, roupas femininas penduradas e um passarinho preso na gaiola no fundo do quadro, que pode ser visto como uma representação de sua própria solidão perante o mundo.

Suas histórias variam desde o tempo em que se descobriu transgênero aos oito anos de idade, período em que foi abusada por um tio-avô, sem nem mesmo ter a consciência de que estava sofrendo um abuso. O preconceito que sofreu na escola fez com que ela não tivesse a oportunidade de ter um ensino formal, porém o cinema foi sua salvação. Através dos filmes, ela conseguiu entender o mundo à sua volta, o que a fez gostar de outras formas de arte e essas obras ajudaram a moldar seu caráter. Não tem como não rir com a forma como ela conta que roubava filmes da locadora onde trabalhava, mas somente os longas que não tinham tanta saída, como os de Ingmar Bergman. Ela faz referências a grandes mestres do cinema como Ozu ou Hitchcock, inserindo momentos dos trabalhos desses diretores constantemente em suas passagens de vida. A sua relação com a família, principalmente com a mãe, que, segundo a atriz, nunca lhe desencorajou, porém a culpou pelo abandono do pai que não aceitava ter um filho que se via como mulher, também nos ajuda a entender o modo como ela encara os percalços pelos quais passou.

Foto: Vitrine Filmes / Divulgação

Uma das partes mais tocantes de Lembro Mais dos Corvos é quando Julia narra sobre como era a aplicação de silicone industrial nas travestis, que era feita clandestinamente, sem higiene alguma pelas chamadas “bombadeiras”. Mesmo não passando por esse procedimento, sua narração impressiona em como as travestis se submetiam e, talvez, ainda se submetam à essa provação, apenas para ganhar algumas características femininas, que geralmente nem ficam perfeitas, tudo causado pela marginalização que os transexuais sofrem na sociedade.

O coração em chamas tatuado no peito de Julia Katharine é uma metáfora para uma vida cheia de tragédias e amores, levada com muita dignidade diante de tanta exclusão. Quando mais um dia amanhece em São Paulo, a atriz não quer mais falar. Lembro Mais dos Corvos termina, mas bem que gostaríamos de ficar ouvindo mais sobre suas aventuras.

::: TRAILER

::: FICHA TÉCNICA

Título original: Lembro Mais dos Corvos
Direção: Gustavo Vinagre
Distribuição: Vitrine Filmes – Sessão Vitrine Petrobras
Data de estreia: qui, 21/02/19
País: Brasil
Gênero: documentário
Ano de produção: 2018
Duração: 84 minutos
Classificação: 14 anos