What Happened, Miss Simone?, primeiro documentário original do Netflix, é um retrato inédito da vida e da carreira da cantora. Se baseia em imagens, entrevistas e nos registros escritos em um diário pessoal de Nina Simone para capturar sua trajetória musical, sua vida doméstica tempestuosa e seu papel como ativista dos direitos civis dos negros. O título do filme é inspirado na declaração de Maya Angelou, ícone da literatura estadunidense e ativista dos direitos civis.

A abertura do longa é marcada pela seguinte reflexão de Angelou: “Senhorita Simone, você é idolatrada,até mesmo amada, por milhões. Mas o que aconteceu, senhorita Simone?” Esse questionamento, assim como o título, sugere que havia algo de errado com Nina, mas também abre margem para outra interpretação: pode sugerir a culpabilidade de indivíduos que desvalorizaram sua existência como uma mulher negra poderosa e influente.

A maioria dos documentários biográficos progridem no estilo simples – pessoas falantes jorrando elogios e listando realizações, uma viagem cronológica ao longo da vida do personagem principal de bater todos os altos e baixos. Mas nas mãos da veterana documentarista Liz Garbus, que nos filmes anteriores investigou a vida de Marilyn Monroe e Bobby Fischer, “O que aconteceu, senhorita Simone?” é um retrato complexo de uma mulher complexa. Um denso painel de uma artista de extremos.

O filme é composto majoritariamente entrevistas de áudio de jornalistas e escritores que estiveram com Nina Simone, de modo que ela narra essencialmente sua própria história de vida. Garbus também deu espaço privilegiado as fotos de família e as passagens do diário da cantora. A trajetória traçada no documentário vai de uma Simone que na infância era um prodígio do piano chamado Eunice Waymon- seu nome de batismo- para seus anos problemáticos – mentalmente, fisicamente, espiritualmente – e, finalmente, o seu regresso depois para a glória.

Nina Simone começou a cantar e tocar piano em um bar de Nova Jersey, em 1954. Até que em1959 explodiu com a cansão “I Loves You Porgy”. Ainda no início de sua carreira Nina conheceu Andrew. Eles se casaram e ele se tornou seu empresário. É notável a relação de submissão que ela foi inserida, ele a controlava e a humilhava. Nina, com suas próprias palavras, disse: “Ele colocou uma arma na minha cabeça, então ele me amarrou e me estuprou”. Simultaneamente ao crescimento de sua fama, assim como o de seu círculo social e o do movimento em prol dos direitos civis nos EUA, também emergiu sua tomada de consciência e consequentemente seu ativismo. Uma metamorfose cultural e política apresentando um elenco brilhante de figuras – James Baldwin, Langston Hughes, Lorraine Hansberry.

A canção “Mississippi Goddam” se tornou um hino do movimento dos direitos civis.  A composição foi inspirada no assassinato de Medgar Evers no Mississippi e o bombardeio da 16th Street Baptist Church, em Birmingham, Alabama, que matou quatro crianças negras. Para Simone, essas transformações foram profundas em sua vida e representou tempos de mudança de alma. Carregava o peso de ser mulher e negra.  Veio suportando abusos e humilhações por muitos anos sem ter uma idéia concreta do que exatamente significava tudo aquilo, suportou calada, mas quando tomou consciência de tudo aquilo sua reação foi explosiva. Ao ponto de sua raiva e indignação se reverberar em seu próprio corpo e mente.

Assim como vários documentaristas, Garbus permite que suas escolhas falem por ela, e consequentemente erra. Um dos seus principais deslizes se encontra nos recortes entre imagens de Nina desestabilizada e a fala de seu ex-marido, Andrew Stroud, que tende a culpá-la. É possível contar a história de uma mulher negra, que é um gênio, que sofreu abuso e abraçar plenamente o impacto do abuso em sua vida? Nós temos que fazê-la cúmplice de seu abuso? É possível experimentar uma mulher negra como um gênio e mostrar seu processo, destacar o que formou esse gênio?

Nina Simone viveu o ódio da cultura exigida na América de poderio branco após sofrer violência extrema. Sua história é a história de muitas mulheres negras que são brilhantes, combatentes da liberdade.