Trecho em obras

Demétrius Carvalho

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22 de outubro de 2014

Um dia eu ouvi aquele som de saxofone na rua Aurora e passei a voltar da faculdade por ela. Até mesmo por que o cara tocava bem. Cerca de duas semanas depois eu estava parando no botequinho da esquina para comer alguma coisa. Na verdade, eu sabia que eu queria me manter por ali ouvindo aquele som. Numa dessas, eu até conhecia o cara e confesso que fiquei empolgado com a possibilidade, mas eu realmente ficava empolgado era no dia em que ele não estava tocando. Podia ser qualquer um na rua. E quando percebi que se juntara ao cara uma bateria e um baixo? Poxa… só faltava eu para entrar com as minhas teclas…

Em um outro dia, meu professor falou que eu precisava começar a tocar com as pessoas, que eu estava tocando bem, mas me faltava a tal da vivência musical. Ele dizia que eu era muito teórico, mas sem vida. Era o dever das férias. Arrumar uma banda para tocar. Qualquer uma que fosse pela tal vivência. Fui então para o quadro de anúncios da faculdade e olhava como quem busca um barco em auto mar depois de um naufrágio. Minhas pupilas quase saltam de minhas órbitas com uma taquicardia que poderia ser loopeada para ser usada em alguma música eletrônica:

PROCURA-SE PIANISTA/TECLADISTA
Rua Aurora 506

Tenho que confessar que matei a última aula por causa disso. Queria logo chegar lá e resolver isso de uma vez por todas, mas quando fui me aproximando, percebi que tinha alguma coisa errada. A numeração apontava dois quarteirões para frente do local que eu imaginava encontrar o grupo. Voltei então para o boteco. Geralmente eu pedia café, mas hoje estava realmente quente e eu saí mais cedo com o sol rachando minha cabeça, então pedi um refrigerante com um cheeseburger. Não havia som vinda da direção que costumava ter. Eu nem estava prestando atenção para ser sincero. Olhava na parede do bar algumas capas de disco que o dono usava como decoração. Conhecia alguns, outros não, mas deu para sacar que era tudo sambista. Escuto algumas vozes atrás de mim. Um grupo fazia seu pedido e eu me dei conta de que estava no mundo da lua. Me levantei e paguei a conta e tomei a direção de minha casa. Olhei para o trio e eles tinham cara de músico. Não me pergunte como é cara de músico. São pessoas iguais as outras, só que tem cara de músicos. Sei lá…

Cerca de 5 quarteirões depois cai a ficha. Aqueles 3 eram os caras que eu ouvia tocar. Voltei quase correndo e chegando perto do boteco, vi eles mais adiante entrando por um portãozinho estreito. Adiantei o passo, trotei, mas não os alcancei. Voltei caminhando bem devagar. Quase me arrastando para alcançar a minha média habitual depois de acelerar e desse vez eu pedi café.

– O senhor sabe me dizer se aqueles 3 que estavam aqui são os que estão tocando?
– Olha… eu não tenho certeza não, mas eles só falam de música. Eu apostaria que sim.

Terminei o meu café e voltei mais lentamente ainda derrubando a minha média e meus olhos colaram naquele número 506 da rua Aurora. A falsa esperança em minha vida. Para piorar a falsa esperança, tinha o período de férias para não encontrar o trio novamente, mas daí teve um dia que eu fui ao local mesmo sem aula. Pedi café e fiquei aguardando. Daqui a pouco aparecem dois deles e me apresentei. Muito mais calmo do que imaginava por sinal.

– Olá pessoal, meu nome é Daniel e eu toco piano. Sempre passo por aqui e escuto vocês tocando. Até toco algumas das que vocês tocam. Blue bossa, So what, Goodbye pork pie hat e vocês tocam algumas que eu não conheço, mas gosto daquele som.
– Que ‘cê tá falando cara? -Enquanto o terceiro cara entra no boteco.
– Vocês não tocam jazz?
– vish, campainha serve?
– Cara, eu to falando sério. Eu toco também.
– Pois aproveita e compõe umas músicas legais para games por que a gente tá indo para a casa do Ricardo aqui para jogar um pouco ok. Se uma música tua entrar na trilha de um jogo, aí conheceremos. Sorte aí na sua busca.

Meus olhos não desgrudaram deles e vi-os entrando no portão logo após a placa “Trecho em obras”. Os caras tinham sido uns verdadeiros otários. Não quiseram nem me ouvir. Estranhamente o som no entanto não começou. Ou pelo menos eles não foram direto tocar. Finalmente, cerca de 40 minutos depois, eles começam a tocar. Fiquei puto e só sairia dali quando aqueles babacas parassem de tocar. Ia chegar junto dos caras e simplesmente me escalar para tocar com eles e pronto, até mesmo por que o som dos caras estava mais do que afiado. Parece ter baixado o espírito do Charlie Parker no grupo e eu olhando quase que hipnotizado pela placa “Trecho em Obras”. Era quase que como o som tivesse saído dali e o pessoal devia estar tocando por cerca de uma hora quando uma voz parece ter falado comigo.

– E aí cara, encontrou a tua banda?

Saí do meu transe e percebi que os 3 carinhas estavam novamente no boteco, mas o som vinha de lá. Impecável, visceral. Não entendi nada. Não entendi e não respondi, mas devo ter parecido idiota por que os caras ficaram rindo de mim. E então, o som parou. Os caras indo e eu sem saber o que fazer olhando para eles, para a placa, eles entram, a placa, um grupo de 3 garotas sai, a placa, pago a conta e dessa vez, eu ia mais lento que aluno de música em contato com novas escalas. Tão lento que as meninas foram me alcançando e fui ultrapassado por elas exatamente na outra esquina depois do boteco. Meio quarteirão depois, uma abre a porta da rua Aurora 506. Dei uma corridinha e perguntei:

– Eram vocês que estavam tocando agora pouco?
– Sim. Por acaso você toca?
– Piano e teclado.
– Engraçado, falamos no caminho que você tinha cara de músico, mas não me pergunte como é cara de músico por que eu não sei.
– Tudo bem, vocês não tem cara de musicista, mas também não me pergunte. Eu não saberia responder também da mesma forma.
– E o que você gosta de tocar?
– Não conheço todas as que vocês tocam, mas Blue bossa, So what, Goodbye por pie hat eu toco. Tem um jaza com uma progressão de bules que não sei qual é, mas conheço a progressão.
– Ah… essa é nossa. Não tem nome ainda e a gente brinca dizendo que o nome da música composta por nós 3 vai ser o nome da banda por que sintetiza o que fazemos.
– Trecho em obras.
– Como assim?
– Trecho em obras o nome da música, da banda e eu que não compus nada da música, batizei a música e a banda e sugiro que tiremos uma foto do quarteto amanhã exatamente naquela placa trecho em obras que fica na frente de onde vocês ensaiam. Minha irmã é fotógrafa.
– Olha cara, você é um tanto quanto abusado, mas sua idéia não é das piores não. Esteja amanhã com seu teclado na placa por volta de 15:00h.

Demétrius Carvalho

Demétrius Carvalho é músico, multi-instrumentista e produtor musical de origem, mas anda com frequência em outras artes passando pela literatura, fotografia. Blogueiro, da suas impressões ainda sobre cinema, artes plásticas e definitivamente é multimídia adorando sobrepor arte sobre arte.
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