Um distinto senhor
Demétrius Carvalho
Aquele senhor paga seus impostos e vai à missa. Ele é gente boa. Distribui brinquedo no dia das crianças e quando ele aparece, elas ficam na expectativa se haverão balas ou chocolates distribuídos. Não são todas as vezes, mas ele é bom. Os pequenos gostam dele. Os adultos? Não podem reclamar. Excelente cliente. Sempre deixa uma gorjetinha por onde passa e é possível notar que os garçons e prestadores de serviço por onde ele passa se esforçam com maior afinco para atender-lhe do que aos outros clientes. Sorriso largo, fácil. Um verdadeiro bonachão.
– Olá senhor Anderson. O de sempre? – Sim sim. O de sempre.
O atendente se vira e na linha tênue entre falar alto e gritar anuncia:
– Aquele pão na chapa e café com leite para o senhor Anderson.
Em padaria dessas agitadas, você sabe como é. O seu Anderson também, por isso quando ele estava na metade do pão, já pediu outro. Isso era uma sincroniza quase milimétrica entre morder o último pedaço do primeiro pão e o primeiro pedaço do último pão.
Tirando um dia que comia apenas um pão, outro que acrescentava alguma guloseima ou um pão para levar para e o pedido de sempre gerava a receita de sempre. Geralmente ele pagava os R$ 8,90 com uma nota de dez reais e assim, o caixa já havia sacado R$ 1,10 para devolver-lhe o troco antes mesmo que ele tivesse chegado ao caixa, mas dessa vez, ele pagou com uma nota de R$ 20.
– Ah… pensei que o senhor pagaria como sempre. – Não, não, não… deixa… meu troco é apenas R$ 1,10 mesmo – O caixa já sabia que isso era um agrado para ele. Na verdade isso não era muito comum não. Assim fora de época, sem motivo algum? No máximo duas vezes ao ano.
As crianças gostavam dele. Os adultos gostavam dele, mas por alguma razão, ele nunca era visto no meio das pessoas da sua idade. Nunca vi nada demais, mas eu tinha uma leve desconfiança que os de sua idade apenas o suportavam. Ciúme do sucesso dele entre os mais novos?
As vezes ele aparecia no meio da tarde também. A padaria mais vazia e eu não havia ainda entrado no meu turno. Vi-o entrar e acenei com um grunido qualquer visto que a boca estava cheia, mas tenho certeza que ele entendeu a minha saudação.
– Olá senhor Anderson… – Sim sim…
O atendente se vira e na linha tênue…
– Aquele pão na chapa…
Ele sentou-se de frente para mim, embora houvesse mais 5 mesas vazias.
– Tudo bem meu jovem?
– Sim seu Anderson. Desculpe ter falado com a boca cheia quando o senhor apareceu.
– Relaxa. “É nóiz!”
– Hahahaha… por isso que toda mundo gosta do senhor seu Anderson.
– Quem é todo mundo meu jovem?
– Todo mundo, seu Anderson. Nunca vi o senhor discutir, brigar com alguém, ou mesmo alguém falar mal do senhor.
– Você acha mesmo? Eu queria estar ali – Uns dedos já murchos e enrugados entregando a idade e até achei que tremia um pouco…
– Por que não está?
– Porque não é todo mundo que gosta de mim. Já fui jovem, babaca e arrogante e como aquelas pessoas se lembram de como eu era, preferiram me isolar.
– Mas que mal o senhor fez?
– Quer que eu seja sincero? Mal nenhum. Apenas também não fiz bem a ninguém, não ajudei ninguém, não elogiei ninguém e me isolaram. Quando eu tentei reverter isso, não me deram chances.
– Mas isso não é justo seu Anderson.
– E quem disse que o mundo é feito de justiça meu querido? Eu posso optar em me amargurar e maldizer a vida, ou olhar as oportunidades e tentar fazer o melhor possível. Posso te confessar algo meu querido?
– Claro!
– Sou ateu. Sempre fui.
– Mas o senhor está todo domingo na missa.
– As coisas podem ser muito mais complexas do que visualizamos. Eu estou ali para ver se consigo ser aceito no meio deles novamente.
– Mas o senhor parece ser muito melhor do que eles que se dizem religiosos.
– Como te falei, as coisas podem ser mais complexas. Acho que alguns vão zerar a mesquinhez e amargura da semana lá. Eles fingem que estão arrependidos e mostram para a sociedade o quanto são melhores.
– O senhor não fica triste com isso?
– Claro que fico, mas sempre haverá uma opção sobre se eu tento ser feliz ou se jogo a culpa de minha vida no próximo.
– Acho que eu entendi senhor Anderson e acho que o senhor está correto, mas infelizmente deu minha hora e daqui a 5 minutos tenho que estar com o uniforme do lado de lá da prateleira. Foi um prazer.
– O prazer foi todo meu.
Entrei, me troquei e fiquei com aquilo na cabeça, quando cheguei na prateleira, ele já estava do outro lado da calçada caminhando.
– Lá se vai um distinto senhor!