Um novo dia

Demétrius Carvalho

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5 de novembro de 2014

De minha janela, vejo as cores anunciarem a chegada de um novo dia. Tomo um banho muito mais para terminar de acordar do que por precisar de fato de um e tomo aquele café muito mais por precisar do que para terminar de acordar.

Peguei meu carro como de costume e dessa vez não foi diferente, exceto pela leve chuva, o cachorro e a faixa.

A chuva:
Uma leve chuva que não chegava a atrapalhar o trânsito, a visão, ou seja lá o que for. Ainda mais em tempos onde a água falta. Eu só podia agradecer a chuva e rezar para que ela se estendesse por todo o dia.

O cachorro: Um vira-latinha qualquer. Desses simpáticos de médio porte com o pêlo mediano para longo preto com um quexinho parecendo um bodinho. Cachorro certo no lugar errado, na hora errada.

A faixa: Mais normal, impossível, dessas duplas sinalizando não ultrapassagem por estar em uma curva.

A combinação dos três é que realmente me ferrou. Faltasse qualquer um desses três elementos e creio que não teria me acontecido nada, mas não atropelemos os fatos. Nem o cachorro, que surgiu do nada, em minha frente naquela curva. Uma dessas bem abertas em uma ribanceira da qual se dá para fazer a curva com uns 60km/h. Não é uma velocidade alta, mas a pista encontrando-se molhada com uma pisada brusca no freio e a puxada que dei instintivamente para a esquerda para livrar o cachorro que apareceu da minha direita e esses poucos centímetros foram o suficiente para uma freada brusca na faixa central da pista molhada. Ou seja, foi como jogar uma barra de sabão em um azulejo molhado acreditando que ele pudesse parar.

Sei que meu carro desceu ribanceira abaixo e não me lembro de ter tido tanto medo na minha vida e acreditem em mim. Sabe aquele papo do filme da vida que passa em nossas cabeças quando estamos em perigo? Pura verdade. Se eu pensasse no filme, essa queda deveria ter durado cerca de 2 horas, mas racionalizando, olhando para a altura e o relógio do carro e eu acredito que não durado mais do que dez segundos. Desta forma, quando ouvir alguém falando sobre o filme, perguntarei como condensar tanta informação pessoal em tão pouco tempo assim, mas ok, vamos ao resto do dia que está só começando.

Não sei precisar qual a altura. 30 metros? Só sei que não foi uma queda livre. Vim abrindo caminho no meio do mato e o carro saltava mais que sapo salgado, mas foi o suficiente para finalmente ter a freiada brusca que busquei segundos atrás. Uma árvore, algum barulho vindo da parte da frente do motor do carro que devia ser o radiador que estourou com a batida e tem uma água fervente em ebulição gerando um vapor de água e continuava tocando Queens of the Stone Age no meu carro. No one Knows. O que é muita ironia para a minha cabeça. Tanto pelo clipe onde se tem um acidente de carro, quanto ficou comprovado alguns minutos depois que “ninguém sabe” que estou aqui.

Apesar da frente do carro ter sido prensada contra mim, não sentia dor e simplesmente tentei me mover para perceber que algo errado tinha acontecido com a minha perna esquerda. Uma dor cortante e paralisante me fez dar um grito e sentir a dor de algo que deve ter sido encoberto pela adrenalina. Encoberto também estava minha visão que não pode ver o que aconteceu com ela. Apenas deduzi. Pela primeira vez na vida Queens the Stone Age me incomodava e desliguei o som. Inicialmente ouvia a água de radiador se esvair e quando ela foi perdendo suas forças, consegui ouvir algum som de carros passando de onde eu não deveria ter passado.

Tentei ligar o motor do carro para acelerar, fazer barulho, mas o motor não respondeu. Já a buzina funcionava em perfeito estado e cerca de 15 minutos depois atolando a mão ali, cheguei a conclusão que não me ouviriam e desisti. Gritar então, desisti em cerca de 5 minutos. Lembrei do celular. Era só ligar para alguém informando onde eu estava, mas é claro que ele não se encontrava mais no painel do carro como eu havia deixado. Na verdade, ele poderia estar em qualquer lugar do carro, ou mesmo fora dele já que a janela do passageiro estava quebrada. Claro que não faço a menor ideia se ela quebrou no começo dos dez segundos mais longos da história ou se já aqui perto da freiada brusca, mas exatamente quando olho para o nada, vejo ele no chão do passageiro. Sua luz mostrava que ele funcionava, mas, preso em meu assento, não podia alcançar o aparelho e não havia nada que pudesse me auxiliar para puxar o meu socorro. Tentei fazer um esforço e a dor parecia rasgar a minha perna. Uma segunda tentativa. Uma respirada profunda e lenta para acalentar a dor e a esperança de mover-me o mais lentamente possível para tentar alcançar o celular, mas não havia acordo com a dor. Era me mover e elevar a centésima potência a dor que eu sentia no momento.

Resolvi esperar e me acalmar e não sei exatamente por qual razão, mas a dor praticamente sumia se eu não me movesse e então, resolvi esperar alguém aparecer, mas não foi preciso mais do que 40 minutos para eu realmente achar que esperava apenas a minha morte chegar. Aliás, quem chegava por hora, era o sol torrando o meu braço esquerdo, mas não tive o que fazer até 13:00h mais ou menos quando ele começou finalmente a recuar por estar acima do carro. Esse alívio deve ter durado 5 minutos até perceber que eu era um carne sendo assada dentro daquele carro e a fome já começava a apertar, mas eu não queria ser o prato de ninguém. Intercalado por uma buzinada aqui ou ali, um grito e o calor começou a diminuir por volta de 16:30h. Sabe aquela outra história que se você passa da hora de comer, chega uma hora que você já não sente fome de novo? Essa é verdade também. Já não sentia mais fome, calor, fome. Só muita vontade de sair dali e finalmente consegui chegando numa praia linda e maravilhosa jogando futebol entre amigos e a perna esquerda estava tão boa como sempre esteve, ou pelo menos até eu acordar e ver que de minha janela, as cores anunciavam a chegada da noite e rapidamente comecei a sentir frio. Sentia muito mais fome agora. Sede nem se fala, mas o sentir medo foi o pior de todos. Os insetos que me acordaram não me metiam medo, mas perturbavam muito, mesmo por que eu tinha que espantar eles quase que de uma forma carinhosa para minha perna esquerda não reclamar. Eu seria devorado vivo durante a noite.

Se o motor do carro não respondia, a parte elétrica parecia ok e liguei os faróis para ver se conseguia ver alguma roupa esquecida dentro do carro, ou mesmo jornal para me cobrir. Não consegui encontrar nada e já não sabia mais o que incomodava mais. A fome, o braço ardendo do sol, a sede, o medo, a dor, só sei que os faróis ligados parece ter atraído um pouco mais de insetos. Apaguei-os, pareceu que tinha mais insetos em mim agora. Liguei novamente. Não tenho certeza, mas parece que chegava mais insetos, mas ficava lá fora rodando em volta dos faróis e saiam alguns de mim. Resolvi deixar ligado e se a bateria acabasse não sei dizer se isso realmente faria diferença. Só sei que me deu sono novamente e não faço ideia de quanto tempo passei dormindo até que fosse acordado por uma equipe de resgate. Justo quando me conformava que pela noite ele não apareceria.

– Como me acharam?
– Digamos que um farol de carro ligado no meio do mato não é muito comum.

Enquanto estava sendo resgatado, pude ver que havia uma fratura exposta em minha perna e me sedaram para cuidar dela. Quando acordei, pela janela do quarto do hospital, agora já com alguns amigos e parentes ao redor, vi que as cores anunciavam a chegada de um novo dia…

Demétrius Carvalho

Demétrius Carvalho é músico, multi-instrumentista e produtor musical de origem, mas anda com frequência em outras artes passando pela literatura, fotografia. Blogueiro, da suas impressões ainda sobre cinema, artes plásticas e definitivamente é multimídia adorando sobrepor arte sobre arte.
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