Uma cerveja antes do almoço é muito bom pra ficar pensando melhor

Demétrius Carvalho

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29 de outubro de 2014

Era somente mais um dia de sol em uma praia. Sentei, pedi uma cerveja e logo estava com o meu celular na mão. Celular nada, escritório, vida social, informações, conexões, esperanças e estresses estavam ali em minhas mãos. É difícil não conferir quais as últimas notícias ou saber por onde andam os amigos. Quando dei por mim, já estava lá curtindo a foto de alguém, vendo as férias de outro, o casamento da prima e eu não sabia por qual motivo eu me sentia melancólico. Talvez fosse alegria demais expressada pelas redes sociais. Vamos então para as notícias do dia.

Queda da bolsa de valores, alta do dólar, falta água, sobe o preço da energia, políticos votam pelo seu próprio aumento, gasolina tem seu preço aumentado. Acho que agora foi muita coisa ruim para compensar tanta alegria. Logo, na média, eu devia estar… normal… mas não. Era estranho. Nem morno sei se era. Dormente talvez a palavra.

Uns garotos jogam bola. Devem ter entre 11 e 14 anos e tem um visivelmente chateado com a derrota de seu time. Me lembro quando passava por isso e chegava puto da vida em casa. Meu pai dizia:

– Quando você crescer, vai estender o que são problemas reais.

Eu, emburrado, não respondia e nem concordava com ele e passado vários anos posso até concordar com ele, mas não discordar de mim. Até aquele momento, aquilo era de fato um problema para mim. É tudo uma questão de referencial. Se eu não tinha problemas maiores em minha vida, aquele era um problema real. Hoje eu relevaria por completo, ou pelo menos já teria passado por problemas maiores para limitar esse ao jogo apenas.

Me levantei e lentamente caminhei. O funcionário da barraca que eu estava fez menção de vir a mim, mas quando viu camisa, chinelo e outros pertences na cadeira, deve ter entendido que eu voltaria. Lentamente caminhei em direção a água do mar, mas não entrei. Parei poucos centímetros da água e deixava as ondas ir e vir e aos poucos enterrar meus pés na areia. Isso me fascinava quando criança. Olhei para trás e os olhos de águia do funcionário não me enganaram. Ele certamente estava de olho para ver se eu fugia sem pagar, mas o levantar da garrafa vazia fez com que ele entendesse o recado e talvez 3 minutos depois, lá vinha ele.

Uma cerveja antes do almoço é muito bom pra ficar pensando melhor…

Dessa vez sentei na areia um pouco antes ainda da maré que não me alcançava, no entanto a maré subia. Primeiro molhou-me a pontinha dos pés, um pouco mais, uma bolada nas costas do mesmo grupo de garotos e ao olhar, percebi que o aborrecido não parecia demonstrar menor sinal de chateação. Quanto tempo havia se passado? 15? 20 minutos? É. A vantagem das chateações nessa idade é que elas passam de uma forma muito mais rápida.

Quis olhar o meu celular, escritório, vida social, informações, conexões, esperanças e estresses novamente, mas uma onda mais ousada molha e gela-me os fundos. Não foi exatamente ruim, mas dei aquela respirada funda quase dolorida de quem leva um choque térmico. Talvez seja isso o que na verdade incomoda no primeiro filete de água no seu rabo. Depois passa, acostuma, fica bom. A maré sobe um pouco mais. Não apenas meus pés eram engolidos pela água nesse momento, quanto a minha própria bunda. Não estava ruim, mas segurar celular, escritório, vida social, informações, conexões, esperanças e estresses, carteira, uma garrafa e um copo começou a ficar complexo. Voltei para a barraca. Pedi outra cerveja e sentei. Bebia mais uma cerveja e já sentia a mente dançar dentro de mim com mais álcool dentro de mim do que eu poderia reter sem sentir seu efeito.

O sol começa a apertar realmente. Não sei se por isso, ou pela proximidade da hora do almoço, os garotos deram aquele bom mergulho na água. O intuito inicial era tirar a areia de seus corpos, mas com certeza, o choque térmico era bem vindo nesse caso. Seus corpos deviam estar em combustão e a água devia estar deliciosamente gelada, mas para mim, a fome apertava. Pedi um bom prato e estando só, me disseram que apenas meio peixe dava para me deixar completamente satisfeito.

Confesso que o cochilo me pegou enquanto aguardava o almoço e quando dei por mim, havia uma barraquinha ao meu lado desses ambulantes que vemos nas praias e aquele que devia ser o seu dono sentado na mesa ao lado da minha. O bronze dele não deixava dúvidas de que aquele era seu escritório. Puxei um papo sobre o que ele vendia e até comprei uma caipirinha embora ele tenha me explicado que estava em sua hora do almoço.

– Meu senhor, se eu disser que tem dia que eu to com preguiça de levantar e trabalhar, estarei mentindo, mas sabe o que eu faço quando isso acontece?
– Levanta e trabalha do mesmo jeito.
– Mas de jeito nenhum. Continuo na cama e pronto. Se depois do almoço, me der uma animada, vou-me por estas praias que conheço como a palma da minha mão.
– Mas como assim, não vai trabalhar? E seu chefe? E as contas para pagar?
– Meu senhor, pode ser que você conheça mais lugares do que eu, fale mais línguas do que eu, tenha mais dinheiro do que, seja mais inteligente do que eu, mas eu apostaria que também é muito mais estressado do que eu. Eu faço o que quero, quando quero, como quero e me sinto livre para não trabalhar por uma semana se eu quiser e ir conhecer algum lugar que não conheço e os poucos que param para conversar comigo demonstram ser tão escravos desse joguinho de vocês que estão aqui mas nem escolheram estar. É a data que sobrou para vocês estarem aqui. Isso aqui para mim, está com cara de shopping. Olha o monte de gente. É puro comércio. Experimenta vir aqui no meio de março por exemplo. Aí sim é pura calmaria. Daqui você escuta o marulho.
– Não posso vir no meio de março. Estou trabalhando.
– É, eu sei. Na verdade eu esperava essa resposta. Vamos fazer um teste? Vou escrever um bilhete que te pedirei para ler mais tarde.

A conversa foi meio que interrompida pelos pratos que chegaram em nossas mesas, mas comi sem realmente provar o prato. Sem querer, ou sem pensar, engoli o que estava na mesa. Quando olhei, o ambulante estava ainda na metade de seu prato e eu já havia destruído minha mesa. Percebi então que até estava delicioso, mas eu não me deliciei com ele de fato.

Finalmete ele termina, trocamos mais algumas palavras e ele me disse:

– Vou voltar a trabalhar agora e quando eu chegar ali embaixo perto da água, leia seu bilhete.

Ele desceu por um barranquinho lateral da barraca por trás do banheiro e chegou a sumir de minha vista. Deveria ler? Hesitei, mas ele reapareceu cerca de 3 minutos depois e cruzou a minha vista. Deu uma olhada para mim e peguei o bilhete:

– Corra menos e preste atenção ao redor. Sinta os sabores das pequenas coisas. Aposto quanto quiser que você termina o almoço antes do que eu.

Demétrius Carvalho

Demétrius Carvalho é músico, multi-instrumentista e produtor musical de origem, mas anda com frequência em outras artes passando pela literatura, fotografia. Blogueiro, da suas impressões ainda sobre cinema, artes plásticas e definitivamente é multimídia adorando sobrepor arte sobre arte.
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