CRÍTICA #2 | ‘Trama Fantasma’ tem condução exímia e não oferece respostas fáceis ao público

Bruno Giacobbo

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22 de fevereiro de 2018

No clássico “Apocalipse Now” (1979), de Francis Ford Coppola, baseado em um romance do aventureiro Joseph Conrad, no clímax do filme, o coronel Walter E. Kurtz, brilhantemente vivido por Marlon Brando, dispara uma frase que ressoa de muitas formas até hoje: “O horror, o horror”. E por mais incrível que pareça, foi esta contundente repetição de palavras que me veio à mente, algumas vezes, assistindo à Trama Fantasma (Phantom Thread), o novo trabalho do cineasta Paul Thomas Anderson. As histórias são bem diferentes. Não há um único link que alguém possa fazer juntando os dois enredos, porém, assim como o militar norte-americano, em diversos momentos, eu me senti exatamente deste jeito, horrorizado, com o desenrolar de determinados acontecimentos diante dos meus olhos. Não sei se o objetivo de PTA era chocar, desconcertar talvez seja a palavra que melhor se aplique aqui. Afinal, é quase certo que todo mundo deixará o cinema desconcertado com o resultado deste longa excepcional.

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Com seis indicações ao Oscar, incluindo as categorias filme, direção, ator principal, atriz coadjuvante, figurino e trilha sonora, esta obra traz a história de Reynolds Woodcock (Daniel Day-Lewis), um costureiro que veste rainhas, princesas e algumas das mulheres mais elegantes da Grã-Bretanha, em plena década de 50. Ele é um solteirão convicto que mora com a irmã Cyril Woodcock (Lesley Manville). No dia a dia, ela é a responsável pela administração do negócio da família, enquanto o irmão goza de total liberdade para exercer sua genialidade. Neste mundinho elitista, não há espaço para paixões transloucadas. Um romance ou outro, da parte dele, mas, no geral, suas vidas são áridas em termos de sentimentos. Entretanto, ao tirar um dia de folga, Reynolds conhece Alma (Vicky Krieps), uma tímida garçonete que vira sua cabeça não por ser um modelo universal de beleza. O segredo do charme dela, na verdade, reside no fato de possuir precisamente as medidas que o estilista considera perfeitas.

Introduzida na rotina dos Irmãos Woodcock, Alma abala as estruturas familiares e profissionais da dupla. Inicialmente, ela serve como manequim para o amado, todavia, gradativamente, vai ocupando cada vez mais espaços, como ajudante na hora de fazer um novo vestido e desafiando a autoridade de Cyril. Quando comparada a uma antiga namorada de Reynolds, mostrada logo no início do filme, é patente a diferença de postura entre as duas. A garçonete é uma pessoa difícil, só que o costureiro também é. Este foi o primeiro momento em que pensei: “O horror, o horror”. Como conviver com um parceiro cheio de manias? Complicado. Tudo o irrita. Uma cena, na mesa do café da manhã, retrata bem esta irritação. O simples barulho de uma faca cortando uma torrada ou passando manteiga; e o ruído do chá sendo despejado na xícara, são capazes de tirá-lo do sério. Tudo realçado e sublinhado por um excepcional trabalho de edição e mixagem de som que deveria ter dado ao filme sua sétima e oitava indicações.

Paul Thomas Anderson trabalha com a subjetividade e com o não dito. Sua obra não oferece respostas fáceis. Já tinha sido assim em seu último longa, “Vício Inerente” (2015), só que lá os personagens eram mais histriônicos, o que chamou atenção e atrapalhou muita gente na hora de ler o que não fora escrito e ouvir o que não fora dito. Contidos, dotados da fleuma típica da realeza britânica (até mesmo Alma, em que pese sua origem humilde), Reynolds, Cyril e companhia precisam ser observados e estudados. Qual é a real natureza da relação entre os irmãos? E o que falar da presença fantasmagórica da finada mãe e mentora do costureiro que paira sobre a casa? Não esperem que nada disto seja explicado com palavras e cenas óbvias. O roteiro escrito de próprio punho pelo cineasta nunca é óbvio, pois quando você acha que sabe tudo sobre aqueles tipos, descobre que talvez não saiba nada. E foi numa reviravolta envolvendo uma frigideira fumegante que, mais uma vez, pensei: “O horror, o horror” e me atinei que aqui cabia mais uma indicação, a nona, no total.

Para garantir o impacto desconcertante do que é mostrado, uma construção de clima eficiente era fundamental. A presença fantasmagórica da matriarca não está apenas nas lembranças do protagonista, numa história sobre um vestido de noiva perdido ou no delírio febril de Reynolds no calar da madrugada. Este é um filme classudo, como atestam o belíssimo figurino de Mark Bridges e a trilha sonora executada em piano por Jonny Greenwood, e de época, o que, muitas vezes, remete a algo velho, mas não necessariamente decadente. Assim, o desenho de produção e a fotografia, que me lembraram “Assassinato em Gosford Park” (2001), de Robert Altman, um dos ídolos de PTA, são decisivos para consolidar esta atmosfera classuda, velha, sem exalar decadência, e fantasmagórica. Desta forma, todos os personagens vagam como fantasmas em torno do trio e o filme poderia ter assegurado sua décima e décima primeira indicações, se a fotografia (do próprio diretor) tivesse sido creditada.

A excelência de Trama Fantasma se deve a todos estes aspectos citados, mas transita também pela exímia condução do cineasta que abusa de múltiplos enquadramentos. Ele começa nos fazendo olhar para a telona de um jeito mais convencional, com planos e contra-planos, para depois induzir o público a seguir sua câmera em perseguições a um carro numa autoestrada ou a um personagem, em um baile de réveillon. Além disto, PTA consegue extrair o máximo de sua trinca de intérpretes. Indicados ao Oscar, Day-Lewis, naquele que deve ser seu filme derradeiro, e Manville estão brilhantes. Contudo, o destaque vai para a luxemburguesa Krieps. A tomada em que Alma conhece Reynolds é o primeiro contato físico entre os dois atores. Logo, o rubor no seu rosto é espontâneo. Daí para um punhado de cenas retratando o doentio amor do casal é um pulo; e nestes momentos é ela que dita os rumos da relação. A passarela é dela para desfilar rumo à décima segunda indicação que, infelizmente, não veio.

Desliguem os celulares e excepcional diversão.

::: TRAILER

::: FOTOS

::: FICHA TÉCNICA

Direção: Paul Thomas Anderson
Roteiro: Paul Thomas Anderson
Elenco: Daniel Day-Lewis, Vicky Krieps, Lesley Manville
Produção: Paul Thomas Anderson, Megan Ellison, Daniel Lupi, JoAnne Sellar
Fotografia: Paul Thomas Anderson
Distribuição: Universal Pictures
Duração: 130 min.
País: EUA

Bruno Giacobbo

Um dos últimos românticos, vivo à procura de um lugar chamado Notting Hill, mas começo a desconfiar que ele só existe mesmo nos filmes e na imaginação dos grandes roteiristas. Acredito que o cinema brasileiro é o melhor do mundo e defendo que a Boca do Lixo foi a nossa Nova Hollywood. Apesar das agruras da vida, sou feliz como um italiano quando sabe que terá amor e vinho.
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