CRÍTICA | Cínico e mordaz, ‘Vidas Duplas’ dialoga perfeitamente com a nossa época

Bruno Giacobbo

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11 de novembro de 2018

Não é difícil identificar a intenção do cineasta francês Olivier Assayas quando decidiu batizar seu novo longa-metragem de Vidas Duplas (Doubles Vies). Leonard (Vincent Macaigne) é um escritor que, com a exceção de um livro policial publicado há oito anos, baseia todos os seus romances em sua própria vida. Seu personagem recorrente tem o mesmo nome que ele, mora na mesma rua e apartamento. O que muda são as pessoas que o cercam. Estas são diferentes daquelas que fazem parte da sua vida. Será mesmo? Como autor, advoga que o gênero que pauta seus escritos é a “não-ficção”. Em outras palavras: a inspiração vem da realidade, mas qualquer semelhança é mera coincidência. Há quem acredite e há quem não acredite. Por conta disto, as redes sociais andam agitadíssimas, se dividindo entre defensores e detratores, desde que sua ex-mulher o acusou de se apropriar indevidamente de sua imagem.

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Paralelamente, Alain (Guillaume Canet), editor de Leonard, vê a empresa que trabalha, uma editora centenária, se debater em dúvidas: investir mais ou não em e-books? Em uma cena, dentro de casa, com sua esposa Selena (Juliette Binoche), que é uma atriz de sucesso, e um grupo de amigos, eles discutem esta questão. Um dos convivas, um escritor, assegura que, hoje, tem mais leitores no seu blog do que em seus livros. Selena, no entanto, resiste à idéia. Afirma que jamais trocará o livro impresso pela versão digital. Ela argumenta falando do cheiro do papel, do prazer de segurar um exemplar na mão, entre outras coisas. O grupo se divide e não chega a um consenso. Alain tem uma funcionária, Laure (Christa Théret), responsável pelo conteúdo digital. No que depender dela, a empresa vai investir cada vez mais em e-books e compartilhamento de conteúdo online.

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De uma forma ou de outra, às vezes mais de uma forma, para ser sincero, alguns destes personagens levam vidas duplas. Por exemplo: Leonard, ao criar um alterego para si e para as pessoas que conhece em seus livros, verdadeiras confissões de diversos casos extraconjugais ao alcance dos olhos de sua atual esposa, Valérie (Nora Hamzawi), a assessora de imprensa de um político famoso. Selena, ao simplesmente exercer seu ofício, pois toda vez que interpreta um novo papel ela se torna alguém diferente. Com o desenrolar da história, vamos descobrindo que existem algumas vidas duplas que são, em tese, secretas. Ainda que mais como pano de fundo, o título do filme também se refere ao nosso comportamento nas redes sociais. Quantas vezes, protegidos pela segurança do nosso apartamento, não agimos como valentões ou fingimos ser quem não somos de frente para o computador? Em vários momentos fazemos isto e nem notamos.

Esteta da palavra, autêntico cineasta-autor, Olivier Assayas segue sem decepcionar desde “Acima das Nuvens” (2014). Ao escrever e dirigir seus filmes, ele tem, para o bem ou para o mal, total controle sobre o seu trabalho. Vidas Duplas funcionaria muitíssimo bem como uma peça de teatro, com seus cinco atores principais e leves mudanças de cenário. Como cinema, tem o acréscimo do poder das imagens sem perder a dramaticidade dos palcos. Através de um elenco bastante entrosado, em que os maiores destaques são a diva Juliette Binoche e Vincent Macaigne, um roteiro que já era, por si só, inteligente, cínico, mordaz e que dialoga perfeitamente com a época em que vivemos, ganha ainda mais vida e arranca ótimas risadas do público. Atentem para um excelente exercício metalinguístico que acontece lá pela reta final e para o jeito que outras obras famosas são citadas. É impagável.

Desliguem os celulares e excelente diversão.

*Filme visto no 20º Festival Internacional de Cinema do Rio de Janeiro

::: TRAILER

::: FICHA TÉCNICA

Título original: Doubles Vies
Direção: Olivier Assayas
Elenco: Juliette Binoche, Vincent Macaigne, Guillaume Canet, Nora Hamzawi, Christa Théret
País: França
Gênero: drama e comédia
Ano de produção: 2018
Duração: 108 minutos
Classificação: a definir

Bruno Giacobbo

Um dos últimos românticos, vivo à procura de um lugar chamado Notting Hill, mas começo a desconfiar que ele só existe mesmo nos filmes e na imaginação dos grandes roteiristas. Acredito que o cinema brasileiro é o melhor do mundo e defendo que a Boca do Lixo foi a nossa Nova Hollywood. Apesar das agruras da vida, sou feliz como um italiano quando sabe que terá amor e vinho.
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