Crítica de filme | Belle

Malu Portela

The Lady Elizabeth Murray, um quadro datado de 1779 está pendurado nas paredes de Scone Palace na Escócia. Nele,  duas mulheres estão a mesma altura olhando diretamente para o público, com suas roupas suntuosas e colares de pérola. A mulher à esquerda carrega um ramo de flores e toca com o dedo indicador direito seu rosto enquanto parece passar por trás da mulher à direita da tela que, gentilmente, repousa sua mão sobre o braço de sua companheira de quadro.  Ao fundo, a paisagem de St Paul, Inglaterra, localiza as duas personagens. Quadros como esse sugerem que as duas figuras seriam irmãs ou teriam algum tipo de parentesco. Essa seria uma descrição usual caso não fosse um único dado omitido: A mulher da esquerda de sorriso gracioso é negra.

A pintura de Dido Elizabeth Belle e Lady Elizabeth Murray exposta em Scone Palace, Escócia


 

Seu nome é Dido Elizabeth Belle, não é sua designação do meio que batiza o quadro, esse é referente a sua prima, a mulher branca à direita da pintura. Belle (Gugu Mbatha-Raw) é filha do aristocrata navegador inglês Sir John Lindsay (Matthew Goode) e de uma escrava negra, acredita-se que seu nome seria Maria Belle, que havia conhecido em uma de suas viagens pelas Índias Ocidentais. O nobre inglês, por viver uma vida dedicada a viagens marítimas, leva a pequena Belle, de cinco anos, para morar com seu tio, Lord Mansfield (Tom Wilkinson),  da maneira que lhe é por direito, como uma aristocrata. Seus parentes a tomam apesar do receio de que seu tom de pele pudesse causar na elite da sociedade inglesa, e por seu futuro sem grandes chances de fazer um casamento proveitoso. Princípio que poderia ser facilmente quebrado se houvesse um grande dote e nobres falidos em jogo.

Em sua iniciação, o espectador é ambientado ao mundo de Belle, sua relação amorosa com a família, e o quanto era insuficiente  ter sido criada como uma lady, andar como uma lady, vestir-se como uma lady, ter a educação de uma lady. Ser mestiça e ilegítima condicionavam Belle a  protocolos que não eram quebrados: Belle não jantava com sua família e convidados, assim como não foi apresentada a sociedade tal qual sua prima.

Cena do filme “Belle”, de Amma Asante

Uma das fontes de conhecimento da história de Dido é o diário de Thomas Hutchinson, previamente governador de Massachusetts, que esteve presente em Kenwood, casa da protagonista, e descreveu o encontro incomum com a nobre mestiça. Seus escritos revelam, além de certo tom preconceituoso, como Dido aparecia para os convidados apenas após o jantar, caminhava com sua prima de mãos dadas pelos jardins da casa e o quanto era querida por seu tio, a ponto desse confiar-lhe a escrita de cartas. Lord Mansfield, também chefe de Justiça em sua época, é sua figura paterna, e a relação entre os dois é um dos principais eixos temáticos do filme.

É a partir de um dos casos que  Lord Mansfield está julgando, que Belle percebe seu afloramento identitário  e político. O caso Zongo, ficou conhecido por ser um dos estopins iniciais para a abolição da escravatura na Inglaterra e, conseqüentemente, no mundo.  O massacre foi a morte premeditada de negros em um navio britânico, 143 escravos doentes foram jogados ao mar em troca do dinheiro de seguro.   A liberdade poética e a construção ficcional do filme começa no encontro de Belle com John Davinier (Sam Reid), um jovem estudante de direito, no filme, e pupilo de seu tio. Ele, um idealista que luta para que justiça seja feita no caso Zongo é o responsável por tirar Belle de seu mundo de nobreza e subordinação e mostrar como vivem os semelhantes de sua mãe, adicionando a película camadas de ação e romance.

O filme trata, sim, sobre o preconceito e a ocupação que o negro tinha na sociedade do século XVIII, tratados como produto e moeda de troca. Mas, Belle, é sobretudo um filme sobre a descoberta de identidade, todos são humanos cuidadosamente dimensionados e dão voz para retratar o período pré-abolicionista. Como a própria diretora do filme, a premiada Amma Asante, afirmou em entrevista para a revista Elle:

Para mim, ‘Belle’ é um filme sobre instinto versus condicionamento

Lord Mansfield encontra-se no impasse de prevalecer em seu lugar de autoridade aristocrata fiel a permanência do status quo da sociedade, ou deixar-se levar pelo o que restou de idealista advindos de sua juventude tal qual espelha John Davinier, já o personagem racista James Ashford (Tom Felton) representa a voz de uma sociedade tradicionalista e arcaica temerosa de uma iminente mudança social com o fim da escravidão.

Em 2012, o ator Morgan Freeman afirmou que os Estados Unidos ainda esperavam por seu primeiro presidente negro, uma vez que, Barack Obama é fruto de miscigenação, pai negro queniano com mãe branca norte-americana. Em 1781, Belle a metade negra, metade branca, filha de aristocrata, filha de escrava, mulher imobilizada pela sua condição de gênero a fazer justiça, ja esbarrava com a incerteza de sua identidade.  Afinal, quem é ela? Onde pertence? O que decide isso, seu instinto ou a sociedade?

Além da escolha dos atores por um elenco encabeçado pela promessa britânica vinda dos palcos Gugu Mbatha-Raw,  passando por Tom Wilkinson e Emma Watson, e de felizes escolhas de linguagem feitas por Asante, “Belle” é um filme que retrata um sociedade que deixou seqüelas  que três séculos depois o mundo ainda não sabe como manejar.

Belle estará passando hoje na HBO norte-americana. No Brasil, infelizmente, não chegou aos cinemas, mas está disponível nas locadoras e por VOD.


FICHA TÉCNICA
 Título original: Belle
 Distribuição: Fox Searchlight Pictures
País: Inglaterra
Data de lançamento (Brasil): 2015
Gênero: Drama histórico
Ano de produção: 2013
Duração: 104 minutos
Direção: Amma Asante
Elenco: Gugu Mbatha-Raw, Tom Wilkinson, Miranda Richardson, Penelope Wilton, Sam Reid, Matthew Goode, Emily Watson

Malu Portela

Sua vida parece ser um eterno road movie. Na estrada, descobriu seu amor pelo cinema: cursou a New York Film Academy, em 2012, no ano seguinte entrou para a Escola de Cinema Darcy Ribeiro e agora está prestes a se formar em publicidade. Também escreve sobre assuntos variados em seu blog pessoal oautorretrato.blogspot.com.br Apenas espera chegar ao final dessa viagem se conhecendo um pouco melhor.

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