Crítica de Teatro | Intocáveis

Aline Khouri

Um homem branco, tetraplégico e bem afortunado decide contratar um senegalês, negro, morador da periferia de Paris como seu ajudante. Não é difícil adivinhar a que filme pertence esse mote: fenômeno que conquistou o público, fala da amizade entre o rico aristocrata Philippe (interpretado por François Cluzet) e seu cuidador Driss (Omar Sy). Os intocáveis não são apenas ficção, eles existem nas figuras de Philippe Pozzo di Borgo e Abdel Sellou; o afeto entre eles resultou em dois livros a respeito dessa convivência. O tetraplégico Philippe escreveu O segundo suspiro enquanto Abdel escreveu Você mudou a minha vida. Além disso, foi feito o documentário cujo título original é À l avie, à la mort.

Desta vez, a história, que se originou na França, chega ao teatro.  Com adaptação de José Rubens Siqueira, a peça Intocáveis conta com a dupla de atores Marcello Airoldi (Philippe) e Ailton Graça (Driss) para dar vida a essa cumplicidade em cima dos palcos. Complementam o elenco  Eliana Guttman (que interpreta a governante e fisioterapeuta Yvonne), Bruna Miglioranza (a secretária Magali), Sidney Santiago (Adamô, irmão de Driss), Lívia La Gatto (filha adotada de Philippe, Elisa) e Ricardo Ripa que é responsável por dois personagens, o advogado Antoine e o namorado de Elisa, chamado Bastien.

Com um cenário extremamente minimalista, pois em raras ocasiões aparece um objeto em cena, os atores passeiam pelo palco amparados pelo próprio texto. Para simbolizar a casa do multimilionário Philippe, há uma projeção na tela de uma porta que parece estar em um espaço adornado por um jardim.  É essa imagem que será a mais frequente para o público que no início acompanha a contratação de um ajudante para Philippe. Entre profissionais qualificados à espera da entrevista, Driss parece ter caído ali de paraquedas; na realidade, ele só quer um documento assinado para comprovar sua presença naquele lugar e conseguir o seguro-desemprego.  Philippe decide se arriscar e oferece a Driss um mês de experiência como seu ajudante.

O inexperiente Driss deve aprender uma série de passos para que possa cumprir os requisitos da vaga. Suas tarefas variam desde dar banho em Philippe até ser seu motorista e é interessante acompanhar o processo de aprendizado do personagem. Isso acontece regado a muita espontaneidade e ao senso de humor de Driss,  muito bem conduzidos por Ailton Graça que rende gargalhadas ao público. Já o tetraplégico Philippe é um homem culto e possui uma personalidade bem mais contida que destoa dos exageros de seu acompanhante. Aos poucos, os dois se aproximam e a convivência entre essa dupla, oriunda de universos tão distantes, resulta em intimidade, cumplicidade e ternura. Durante a peça, Ailton Graça e Marcello Airoldi conseguem estabelecer uma boa química e a adaptação é bastante fiel ao filme. Quem assistiu ao filme Intocáveis reconhece cenas e diálogos, desde os “pequenos momentos” como quando Driss reclama da consistência de um petit gateau até circunstâncias mais significativas como quando Driss e Philippe saem para dar uma volta de Maserati pelas ruas de Paris.

Um dos traços principais da história é a falta de (auto) comiseração. Philippe não perde seu tempo lamentando sua condição na cadeira de rodas, resultado de um acidente de parepente, e de dependência alheia. Da mesma maneira, fica claro que busca alguém que tenha a mesma linha de pensamento e o trate com dignidade. Em uma conversa com seu advogado e primo Antoine (Ricardo Pipa), enquanto este o alerta sobre a contratação de Driss, Philippe explica que o ajudante executa seu  trabalho sem banhar-se em pena.  O aristocrata cita que Driss sempre estende a mão para lhe entregar o telefone, pois “esquece” estar diante de um tetraplégico.

Se em termos de comparação com o filme francês, a peça brasileira faz um trabalho bastante fiel ao texto, existem diferenças naturais entre teatro e cinema. Como explica Rubens Siqueira, enquanto no cinema existe uma trajetória de expansão; no palco, muito tem que ser compactado e sintetizado. Isso fica claro ao pensarmos nas projeções de cenário no palco enquanto que o filme dá uma dimensão mais visual e completa da riqueza e do ambiente em que Philippe vive, por exemplo.

Mesmo assim, o entrosamento entre o elenco mostra que esses fatores não prejudicam o desenvolvimento do espetáculo. Outro ponto para prestar atenção é que a adaptação brasileira trabalha, sobretudo, com o riso, com a comédia. Há um tom de melancolia que também predomina no filme francês e que se mistura à comédia, o que enriquece mais a história, mas que a peça não consegue alcançar e transmitir para o público. Esse equilíbrio entre o riso e a contenção é mais bem observado no filme.

:: FICHA TÉCNICA
Adaptação: José Rubens Siqueira
Direção geral: Iacov Hillel
Direção de produção: Marcella Guttmann
Elenco: Ailton Graça, Marcello Airoldi, Eliana Guttman, Bruna Miglioranza, Lívia La Gatto, Ricardo Ripa, Sidney Santiago
Participação especial: Zezé Motta
Assistência de direção: Danilo Gambini
Cenários: Luiz Roque
Figurinos: Olivia Arruda Botelho

Aline Khouri

Jornalista, com especialização em Cultura. Adora ler e escrever sobre pessoas e assuntos culturais, especialmente Literatura, Cinema e Teatro.

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