CRÍTICA | ‘Maresia’ é um verdadeiro filme de arte

Bianca Moreira

O que é ser artista? O que é a arte? Como a arte se expressa em uma sociedade como a nossa? Qual é o verdadeiro valor de uma obra? O que nos garante sua autenticidade? Como ela se relaciona com a vida?

Essas são algumas das indagações que permeiam o primeiro longa-metragem do cineasta Marcos Guttmann, Maresia. Baseado no romance “Barco a Seco”, de Rubens Figueiredo, o diretor deixa o barco em segundo plano e investe no poder sensorial do mar. Artifício que garantiu um rigor estético belíssimo do início ao fim da película.

Um perito em artes plásticas se depara com a sensação frustrante de não conseguir estabelecer limites precisos e rigorosos as analises das obras do artista em que se especializou e percebe, a contra gosto, que seus instrumentos abstratos são sempre mais grosseiros do que aqueles objetos exigiria.

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Esse é o motim que impulsiona grande parte da história. Gaspar, avaliador de uma galeria de arte, é obcecado pela obra de Emilio Vega, um mítico pintor desaparecido há anos e dado como morto. Até que todas as suas certezas em torno da vida e obra do artista são postas em xeque por Inácio Cabrera, um senhor que diz ter conhecido o artista durante sua juventude.

Maresia possui dois tempos narrativos: um­­­ retrata a investigação obcessiva de Gaspar por Emilio e outra mostra trechos da vida e da trajetória de Vega. Nesse aspecto, a direção de arte foi implácavel. A vida de Vega é retratada com cores quentes equanto a de Gaspar, é feita em tons pastéis, delimitando, dessa forma, essas duas personalidades distintas. Gaspar simboliza a racionalidade, a princípio não leva a sério as histórias contadas por Cabrera e desconfia de tudo que esteja fora do alcance de suas pesquisas. Sua arrogância faz com que beire a falência. Por outro lado, Emilio Vega, seu antagonista, é a personificação do incerto. Vive em um barco, troca seus quadros por comida e bebidas alcoólicas, não tem rotina fixa, pinta quando bem entende e por muito tempo, paga o preço de sua liberdade com a solidão. Apesar da nítida diferença entre os dois, o que os conecta é o mar, que nesse filme transcende a posição de cenário.

Um dos grandes destaques do longa é, com certeza, a atuação de Júlio Andrade. O ator atinge uma performance camaleônica surpreendente ao interpretar os dois personagens principais. As suas composições foram feitas de forma tão singular que é quase imperceptível aos olhos do espectador que trata-se da mesma pessoa.

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O limite entre as artes; a questão do direito autoral; expectativas e ansiedades sobre o mundo altamente subjetivo que é o da arte são os principais eixos temáticos da obra. Uma das cenas mais marcantes é quando um colecionador leva um de seus quadros para que o perito avalie sua legitimidade. Quando Gaspar atesta que se trata de uma falsificação, o colecionador ateia fogo ao quadro.

Nesse ponto, Maresia toca em uma questão muito presente em nossa sociedade: a prepotência do academicismo, escancarando que a ligação que estabelecemos com a arte é uma relação de crença. Só quando cremos que ela é verdadeira, autêntica e fruto do trabalho de um determinado artista é que vale a pena contemplá-la. A problemática da coisa está no fato de que na maior parte das vezes, essa “crença” vem do veredicto de um estudioso do tema, deixando de lado qualquer outra fonte. A certeza cientificista de nosso tempo não tolera a ideia de que algo lhe escape. Gaspar entra em crise, sofre a angústia de não poder prescindir nesses domínios o trabalho da razão, da busca metódica da exatidão comparativa ou analítica.

Maresia é um filme de arte. Não só por tratar de temas referentes ao universo das artes plásticas, mas também por ser estética e dramaturgicamente bem trabalhado. Guttmann soube executar, de forma exemplar, os recursos que o universo cinematográfico pode oferecer. Além de ter construído um enredo que alterna presente e passado sem grandes choques na narrativa, também manteve o tom místico da história – por diversas vezes, ficamos em dúvida se aquilo que estamos vendo é parte da trama, ou apenas um delírio de algum personagem.

É, sem sombras de dúvida, um filme que merece a dedicação de algumas horas do nosso tempo para contemplá-lo.

TRAILER:

FICHA TÉCNICA:
Direção: Marcos Guttmann
Roteiro: Rafael Cardoso, Melanie Dimantas, Marcos Guttmann
Elenco: Júlio Andrade, Bruce Gomlevsky, Vera Holtz, Pietro Bogianchini, Mariana Nunes, Jonas Bloch
Produção: Katia Machado
Produção Executiva: Mauro Pizzo, Katia Machado
Fotografia: Alexandre Ramos
Direção de Arte: Lulu Continentino
Maquiagem: Lucila Robirosa
Figurino: Gabriela Campos
Montagem: Waldir Xavier, Marília Moraes
Música Original: Stefano Lentini
Música Adicional: Edson Secco
Som Direto: Paulo Ricardo Nunes
Edição de Som: Waldir Xavier
Gênero: Drama
Duração: 77 min.
Estúdio: Solar Filmes & Passaro Films
Distribuição: EH! Filmes

Bianca Moreira

Estudante de jornalismo. Apaixonada por literatura,teatro, fotografia e especialmente pela sétima arte.

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