RESENHA | ‘Desterros’ mostra a realidade de hospital-prisão de São Paulo
Aline Khouri
A psiquiatra Natalia Timerman trabalha no Centro Hospitalar do Sistema Penitenciário de São Paulo (SP) desde 2012. Parte de suas experiências foi retratada na obra Desterros – histórias de um hospital-prisão, publicada pela Editora Elefante.
Na realidade, o livro é também uma adaptação da dissertação de mestrado de Natalia: “A liberdade segundo sua privação: (im)possibilidades do homem num hospital penitenciário”. Se existe uma palavra para definir Desterros é sensibilidade. Mestre em Psicologia Clínica pela USP, Natalia aborda as histórias que encontrou dentro do sistema penitenciário de uma maneira muito respeitosa, observadora e empática. Ela discorre sobre o início de seu trabalho e suas percepções naquela época, conta algumas histórias de pacientes que conheceu e tece reflexões sobre o encarceramento – uma de suas referências é a filósofa alemã Hannah Arendt.
Um dos fios condutores da narrativa é a história comovente da angolana Donamingo (nome fictício, assim como de todos os outros pacientes), que morava em Luanda, em Angola, e foi presa por tráfico de drogas no aeroporto de Guarulhos, em São Paulo.
Donamingo saiu de seu país pela primeira vez em busca de melhores condições de vida após ser procurada para trazer sapatos. Ela alega que não sabia da existência das drogas que a relegaram a uma vida de dificuldades em um território que lhe era completamente desconhecido e onde tinha problemas para se comunicar com as outras presas. Para agravar esse cenário, Donamingo descobriu que estava grávida e que poderia ter que abrir mão de seu bebê Zaki, que se tornou sua razão de viver e lhe deu esperança.
A autora faz belas descrições do relacionamento entre os dois: “O tempo parecia feito de uma matéria espessa por onde transitavam os sons, todos ameaçadores. Quando estava diante dele, no entanto, o tempo se dissolvia. Ela cantava, ela o tocava, ele estava vivo e ela também. Zaki vingou […]. Sua nova casa era dentro dos braços de Donamingo, um calor de verdade, embalado pelo som constante de sua voz, dentro da prisão, na ala das puérperas do CHSP”.
“Pouco a pouco, a moleza dos músculos dele foi endurecendo em tônus, enquanto o retesado dos músculos dela se dissolvia no carinho que confiava a ele. Grama a grama, ambos ganhavam peso. Olhar a olhar, som a som, eles construíam um mundo que pudesse lhes caber, um oásis de pertencimento mútuo em meio àquela terra sem terá, tantas vezes limitada, tantas vezes estrangeira. Ganhavam força, ambos, a partir de seu encontro”, escreve Natalia.
Em Desterros, mostram-se as impossibilidades, o tempo morto e até mesmo o semear de alguma esperança na prisão, cujas deficiências estruturais não reabilitam os presos e os marginaliza em uma sociedade que não os enxerga humanamente. Aliás, esta é uma das primeiras descobertas que Natalia faz quando inicia seu trabalho no CHSP: o reconhecimento dos presos como pessoas. Ao fazer isso, ela constrói uma relação em que a fala de pessoas regularmente desprezadas passa a ter significado e a escuta é priorizada.
Em alguns momentos, a autora questiona os presos sobre o significado da liberdade e chega a descobrir que compartilhar a própria história pode representar um respiro em meio ao aprisionamento. O projeto do livro também merece destaque e completa o trabalho delicado de Natalia que, apesar da dureza dos assuntos tratados, deixa um sorriso no rosto de quem o lê.
Ficha técnica
Título: Desterros – histórias de um hospital-prisão
Autora: Natalia Timerman
Editora: Elefante
Ano: 2017
Projeto Gráfico: Bianca Oliveira
Especificações: Brochura, 192 páginas
Aline Khouri
Jornalista, com especialização em Cultura. Adora ler e escrever sobre pessoas e assuntos culturais, especialmente Literatura, Cinema e Teatro.















































