CRÍTICA | ‘Se a Rua Beale Falasse’ consolida Jenkins como o porta-voz da América excluída

Bruno Giacobbo

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11 de novembro de 2018

Em um primeiro momento, se um desavisado for ler sobre o que versa Se a Rua Beale Falasse (If Beale Street Could Talk), novo longa-metragem de Barry Jenkins, ele pensará que se trata de mais um destes muitos filmes de tribunais: “Mulher jovem, grávida, vê o pai de seu filho ser acusado injustamente de estupro e busca provas que possam inocentá-lo”. Não parece uma daquelas chamadas da televisão? Dá até para imaginar a voz do locutor. Só que o cineasta ganhador do Oscar por Moonlight (2016), definitivamente, passa ao largo de tramas assim. Seus trabalhos, pelo menos até agora, são mais sensoriais, quase como se fossem poesias ilustradas por frames. E, em uma espécie de continuação informal de sua obra anterior, já que as duas retratam alguns dos problemas por quais passam os negros americanos, ele escolheu adaptar um romance do escritor James Baldwin.

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O filme e o livro (publicado originalmente em 1974) partem exatamente da premissa grifada. Tish (Kiki Lane) e Fonny (Stephan James) estão apaixonados. Ela tem 19 anos, ele, 22. Vivem com suas famílias e levam uma vida simples. A garota trabalha como vendedora de cosméticos em uma loja de departamento; o jovem, por sua vez, na cozinha de um restaurante sendo que, nas horas vagas, faz artigos de carpintaria no porão de casa. Um dia, acusado de violentar uma moça porto-riquenha, mãe de três crianças, Fonny vai para a cadeia. Imediatamente, Tish descobre que está grávida e, com o apoio de sua família, decide fazer tudo o que estiver ao seu alcance para provar a inocência do pai de seu filho. Até aí, este seria um longa de tribunais, subgênero que rendeu os excelentes “12 Homens e uma Sentença” (1957) e “O Sol é para Todos” (1962). Acontece que este não é o objetivo desta história.

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O cineasta não está interessado em provar a inocência de seu protagonista e consequentemente descobrir como tudo aconteceu. Embora, uma certa cena fará com que a ficha dos espectadores mais atentos caia, deixando tudo absolutamente claro. Com uma narrativa não linear, em que as imagens do presente e do passado se alternam como uma bruma difusa, nublando os sentidos de quem assiste a este mise-en-scène, a ideia era, contrapondo alegrias e tristezas, nos fazer sofrer juntos e solidariamente. Tudo com o devido auxílio de uma trilha sonora instrumental de jazz que remete não à alegria do Mardi Gras, mas a melancolia das ruas de Nova Orleans quando a cidade não está em festa. E não esperem que o desfecho desta trama traga algum alívio, pois as últimas obras de Jenkins, incluindo esta, tem por hábito, para felicidade de alguns e desespero de outros, deixar tudo meio que no ar.

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Logo na primeira cena ou na segunda, não sei com certeza, uma narração em off, na voz da protagonista, diz: Quem dera vocês nunca tenham que ver o amor de suas vidas através de um vidro, em uma óbvia referência ao fato de que, nos Estados Unidos, os presos não tem direito ao contato íntimo com seus cônjuges. Depois, vemos Tish visitando Fonny na cadeia, separada pelo tal obstáculo. Aquele vidro serve como uma metáfora para a barreira que sempre separou os brancos anglo-saxões das demais etnias. É curioso como, em seu livro, Baldwin (e o diretor manteve isto) retratou o negro como vilão, o latino como a vítima e que justo um dos brancos simpáticos ao acusado seja um judeu. Todos representantes de minorias que, ao longo dos anos, sempre foram relegadas ao segundo escalão da sociedade estadunidense. Há um simbolismo forte e importante nesta conjunção de estereótipos.

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Como escrevi lá em cima, assim como Moonlight, Se a Rua Beale Falasse retrata alguns dos problemas pelos quais passam os negros americanos, contudo, ele também dá voz a todas estas minorias excluídas por tempos a fio. Os protagonistas são Tish e Fonny, mas poderiam ser José e Maria; Levy e Sara ou Rocco e Giovanna. Não importa. O que realmente importa é que, dentro deste contexto, cenas sutis (e eloquentes) como a que a personagem principal tem a sua mão, borrifada de perfume, cheirada por várias pessoas, em alguns casos de uma forma bem aviltante, são muito mais significativas para o objetivo final do que outras carregadas de uma dramaticidade exagerada. O encontro familiar em que Tish revela a gravidez é engraçado, mas desimportante. Mesmo imperfeita, com coisas que deveriam ter sido podadas, a nova obra de Barry Jenkins o firma como o atual porta-voz da América excluída.

Desliguem os celulares e excelente diversão.

*Filme visto no 20º Festival Internacional de Cinema do Rio de Janeiro

::: TRAILER

https://www.youtube.com/watch?v=s_Cz7vyecv0

::: FICHA TÉCNICA

Título original: If Beale Street Could Talk
Direção: Barry Jenkins.
Elenco: Kiki Lane, Stephan James, Regina King, Colman Domingo, Brian Tyree Henry
Distribuição: Sony
País: Estados Unidos
Gênero: drama
Ano de produção: 2018
Duração: 117 minutos

Bruno Giacobbo

Um dos últimos românticos, vivo à procura de um lugar chamado Notting Hill, mas começo a desconfiar que ele só existe mesmo nos filmes e na imaginação dos grandes roteiristas. Acredito que o cinema brasileiro é o melhor do mundo e defendo que a Boca do Lixo foi a nossa Nova Hollywood. Apesar das agruras da vida, sou feliz como um italiano quando sabe que terá amor e vinho.
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